– Criança não tem querer!
Quantas vezes ela me disse isso. Quantas vezes engoli a frustração, abandonei o sorvete no balcão da lanchonete por ser hora do almoço. Ou suspendi o mergulho na piscina porque a barriga estava cheia. Mãe sabe de tudo. Manda quem sabe, obedece quem tem juízo.
Agora era ela, insistindo numa compra nada recomendável, com as mãos estendidas para o homem da carrocinha e uns trocados na ponta dos dedos. Minha vontade era dizer: você não tem querer!
– Pode por bastante molho! – pediu ao vendedor.
– Mãe, o ácido úrico…o colesterol.
O homem me olhava, esperando eu autorizar a largada, segurando o pegador da salsicha no alto. Na outra mão, o pão já cortado ao meio. Ela me ignorava.
– O senhor tem mostarda? Põe também, por favor.
O homem, franzindo o canto da boca, se mostrava impaciente com a minha indecisão. Eu queria dizer “não” mas meu comando era fraco. Mamãe vencia por 5 x 0.
– O médico acabou de dizer que a senhora precisa cuidar da alimentação.
– Que médico?
– O médico!
– Eu não sei de médico. Eu vim comprar cachorro-quente. A não ser que esse senhor aí seja médico.
Desisti. Há horas em que desisto. Há lutas que não valem a pena. A dos remédios, sim. As de higiene, sim. As injeções e a fisioterapia, sempre. O cachorro-quente era uma derrota admissível. Uma única vez em meses. Vá lá.
Sentamos num banco da Praça Saens Peña para ela lanchar. Um calor insuportável. Um entra e sai de gente no acesso ao metrô. Um grupo de bolivianos tocava para poucas pessoas. Viramos público também, destacadas na plateia quase vazia.
– É aniversário de quem? – disse, confundida pela música e pela agitação da praça – Quando tocarem Wanderléa, vou dançar. Sei todas as coreografias.
Imitava no ar, com a mão direita, os trejeitos da cantora. “Pare! Agora!”. Gargalhou. Seus olhos brilhavam.
E nesse instante, sob o som do seu riso e sob aquela faísca, reencontrei, numa fraçãozinha de tempo, a mãe de quem sentia saudades. Sorri para ela, o peito aquecido de ternura diante da sua alegria. Se ela dançasse Wanderléa, dançaríamos juntas. Eu ainda sabia de cor as coreografias aprendidas quando era criança e as tardes eram só nossas.
Depois do lanche, perdeu-se fitando o guardanapo amassado entre as mãos, entristecida.
– Já temos que ir?
– É você que sabe, mãe. Criança não tem querer.
Encostei no seu ombro. Ela se recostou no banco. A música era boliviana mas, no ar, suas mãos dançavam iê-iê-iê. Estava feliz. Eu também.