– Eu sabia! O que vou dizer na festa do condomínio?
– E daí, Matilde?
– Ninguém vai querer te dar a mão no culto ecumênico.
– Você está preocupada com isso?
– Não podemos contar pra ninguém. As crianças não podem ser discriminadas pelos amiguinhos. Você não pensa nas crianças?
– Eu não ligo pra essas pessoas. Enchem o grupo de mentiras. Se não é maldade, é ignorância.
– Ah, você sempre traz o filé do pensamento, né?
– Levo a minha verdade.
– Não tem verdade individual, não, Arnaldo. Ninguém customiza verdade. Você é contra ou a favor.
– Sou contra tudo o que essa gente prega.
– “Essa gente”, Arnaldo?
– “Vão invadir esse lugar”, “vamos virar uma”…
– Venezuela?
– Tijuca! Pavuna! Sei lá, esse pessoal renega as origens.
– Todo mundo sonha melhorar de vida, ora. Mas você cisma de achar fofo esse comportamento suburbano.
– “Comportamento suburbano”? Este lugar te contaminou, Marlene. Você nem percebe o quanto ficou preconceituosa.
– Ai, amor, sem celeuma, vai… Participa do culto, do amigo-oculto de chocolate suíço e volta para casa. Sem revelação bombástica. Seus filhos não merecem esse constrangimento.
– Vou me sentar com o Heitor.
– Heitor? Justo quem não participa das rodas? Ele só vai à festa porque a Tati o obriga.
– Você está me obrigando.
– Heitor é um que queria sair daqui, só pra morar perto do metrô. Ai, gente, não dá nem pra conversar.
– Ele trabalha no centro. Morar aqui e trabalhar no centro é…
– Você tem justificativa pra tudo!
– Chega! Vou falar. Assim param as indiretas no grupo. O que tem de mais? Fui eu mesmo que pus a ideia da doação de alimentos pra moradores de rua na caixa de sugestões das ações pro Natal. Fui eu!
– Primeiro: eram sugestões pro Natal do con-do-mí-ni-o. Não era pra fazer justiça social, só uma festa. Segundo: Barra não tem morador de rua, Arnaldo! Se tem, está perdido. Liga pra um abrigo buscar, então. Dar comida? Incentivar a permanência?
– Mas é Natal, mulher!
– Terceiro: você vai passar por corrupto, hein? Dinheiro investido em morador de rua? Ninguém acredita nisso. Uma cesta de Natal pro cara que limpa a piscina, vá lá. As pessoas vêem, conhecem.
– Mas é só sair pra passear com os cachorros na praia que vemos os moradores de rua. Não é preciso “acreditar”.
– E quem sai com cachorro, Arnaldo? As pessoas, agora, têm passeador de cães. Em que mundo você vive?
– Desisto. Está bem, não vou estragar a alegria da família. Fico na minha, sento com Heitor.
– Heitor…
– Depois do jogo da final da Copa, desço. Com os chocolates suíços.
– Depois? Mas final de Copa tem que ser no salão azul! No telão de LED para eventos!
– Prefiro ver o jogo em casa, amor. Sem gente passando na frente da bola.
– Sem um “selfie” com a galera toda de verde e amarelo? Sem fazer um “reel” com a torcida? O que você vai postar? Dois pés esticados no sofá e o jogo na tevê do nosso living?
– Não vou postar nada. Vou ver o jogo.
– Ai, Arnaldo, quem desiste sou eu. Você está louco!
– O que eu fiz agora?
– Outra Copa só daqui a quatro anos! Vou te avisando: se a seleção ganhar e eu não sair na foto dos casais, no perfil da Tati, diante de milhares de seguidores, eu me divorcio de você! Como se eu fosse uma mulher largada… Ah, me divorcio mesmo!
ANA LÚCIA GOSLING