Hoje, na estreia do projeto AC Literatura Convida, nossa colunista Ana Lúcia Gosling (@analugosling) nos traz a crônica “Sabia que a imediata obrigação era o sonho”, da autora Fausta Boscacci (@faustaboscacci_):
Sabia que a imediata obrigação era o sonho
Las Ruinas Circulares, J. L. Borges
Minha maior dificuldade sempre foi não sonhar. Adolescente, um dia, uma revelação sobreveio.
Li um conto argentino, de quatro páginas e meia, que me libertaria da culpa de viver como sonhadora contumaz.
Uma fonte de minhas dores adolescentes fora a convicção de que, para funcionar na vida cívica, familiar, social, precisava ter os dois pés no chão. Sonhos desafiam a ordem pragmática das contas-a- pagar, e isso, percebi muito jovem. Percebi, por outro lado, que o sonho é a palavra em uma de suas formas mais inefável e abstrata. Já discorri, há algum tempo, sobre o fascínio das palavras em minha curiosidade desarmada. Investigava as mensagens nos outdoors de minha infância, regozijava decifrando os sinais de proibido-estacionar e esperava ansiosa o crepúsculo quando a tia-avó nordestina contava sobre os cães de olhos cor-de-brasa e o destino das aparições desamparadas nas estradas do sertão. Acontece que, para mim, o sonho é a continuação natural dessas histórias, ouvidas ou proferidas, que minha mente coleciona convulsivamente.
Para mim, a fronteira entre a vigília e o sono nunca fora muito bem definida. Meus sonhos me abusam. Por alguma razão, não consigo impor-lhes o devido respeito e ficam a invadir a vigília, a bulir com a consciência, a se imiscuir nas obrigações de minha vida oficial e a reinar soberana e autoritariamente quando cerro os olhos, a ponto de invadirem o país de minhas horas acordadas.
Insistem em serem lembrados. Ai, muitas vezes tenho de exorcizar emoções que só fizeram sentido enquanto estive dormindo.
A lembrança mais remota da experiência de transitar nessa fronteira nebulosa data de meus sete anos. Fechava os olhos e formas puras de objetos concretos e de conceitos abstratos avançavam em minha direção, num redemoinho de imagens. A espiral não me deixava dormir. Sonhava acordada.
Lembro da solidão e da angústia que, pela primeira vez, aqui as publico. Provavelmente o faço apenas porque uns sete anos depois dos vórtices invasivos encontrei com a narrativa de Borges, seu simbolismo de fogo e reinvenção do sagrado. Las Ruinas Circulares habitam minha mesa de cabeceira desde então.Não lembro da vida sem sonho. Lembro do conto sobre a imediata obrigação do sonhador e do efeito dele em minha angústia quase impúbere. Bendigo o alívio que compartilho, com o narrador, de me poder compreender como aparência e, quiçá, como a filha de alguém que me sonha, mas sem humilhação ou terror; pois aqui, sonhada e sonhadora, serei sempre eu.
Minibiografia da autora
Fausta Boscacci tem doutorado em linguística e é apaixonada pelo estudo de narrativas, buscando incorporar as ferramentas da cronista a uma escrita que, de tão pessoal e intuitiva, não consegue ainda vencer a timidez da gaveta.
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AC Literatura Convida foi idealizado pelo nosso colunista César Manzolillo (@cesarmanzolillo).
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