Para Carlos, só na literatura cabia falar de um ponto no espaço e no tempo que abarcasse todas as realidades.
– Borges, né?
Até quando físicos, mesmo a NASA, começaram a falar da probabilidade de universos paralelos, Carlos riu-se.
– Borges, Hawking, ensaios, teorias… Literatura!
Carlos sabia do hoje, do momento real, do que a vista alcança, do que a mente pode explicar. Mas se reservava a curiosidade pelo mistério. Para ele, o inexplicável era um quebra-cabeças, ainda desmontado, mas nada extraordinário: as peças dispostas sobre a mesa, esperando a mente organizá-las.
Experimentou o chá do Daime quando saiu com Thais, que era da seita e pesquisava sobre a profundidade da alma. Embora ele achasse isso entediante, fingia atenção em troca das noites de amor, por ela ter um interesse real no bem estar dele. O chá não lhe revelou coisa alguma.
Praticou vivências psicoimersivas com Sandra, que sempre buscava o núcleo dos problemas, das dores, dos prazeres. Mesmo achando desnecessária a busca, adorava as discussões filosóficas durante o jantar, coroando seu prazer na companhia dela.
Até num vidente um amigo o levou, certa vez, para mostrar revelações entre os mundos físico e espiritual. Ele foi, curioso, e calou-se para que o amigo, viúvo, continuasse a acreditar que a esposa morta ainda seria capaz de amá-lo em nova existência. No fundo, duvidou de tudo. Hipóteses, crendice, alento para o desespero.
Mas as coisas acontecem de repente. Mexendo nas gavetas de casa, numa noite, Carlos achou a caixa da bebê. Maria, sua ex-mulher, tinha guardado algumas lembranças da filha deles, falecida ao 1º ano de idade: primeiras unhas cortadas, marca do pezinho no mata-borrão, primeira chupeta. A mãe abandonara a caixa numa gaveta do armário, antes de deixar o casamento que não sobreviveu às dores da perda. Compreendeu: a caixa de lembranças era um pequeno túmulo das alegrias vividas. Talvez Maria pensasse serem alegrias desperdiçadas.
Carlos deixou a caixa sobre a cama enquanto pensava se deveria abrí-la. A memória da filha amada, a dor anestesiada pelas atividades do dia, era pungente ao cair da noite. Tomou banho, jantou sozinho, não se demorou na frente da TV, recolheu-se.
Sentado na cama, abriu a caixa. O cheiro de talco ainda ali, abrindo a memória dos dias em que a casa inteira cheirava a neném. Carlos mexeu nas idiotices colecionadas e sentiu uma grande ternura renascida no peito. Deitou-se, após chorar as lembranças felizes e rezou, lamentando não acreditar em rezar.
À entrada do quarto, um grande portal se abriu. Carlos achou que sonhava e levantou-se. O túnel se alargou ainda mais. Caminhou para dentro dele. Nas paredes etéreas, as fotos dos momentos em que a filha sorria sem dentes, a mulher iluminada pela maternidade. Antes, Maria era a menina que ele beijou no bar. Carlos, jovem, o rosto coberto de espinhas encolhido ao fundo da sala de aula, sonhando tocá-la. Passos à frente, estava sentado à mesa, na última noite em que jantou com seu pai. Na sequência de imagens, a mãe abrindo os braços amorosos para acolhê-lo, pequenino, na corrida de volta do mar, sentada na areia, sob a sombra da barraca que o pai tinha dificuldade em fixar. Deteve-se diante dos olhos grandes da mãe fixados nos seus e ele, aninhado na manta, no seu colo, via girarem, sobre sua cabeça, as estrelas de pano sob o som da canção de ninar.
Carlos se encolheu, numa pose fetal, cercado pela rede de memórias. Não era passado, tudo estava ali: os sons, as risadas, até o cheiro das pessoas o cercavam. Podia sentí-las. Ficou preso ali, sem dar mais um passo, com medo de afastar-se daquelas paredes fluidas.
Seis horas. Amanhecera. Carlos permanecia deitado no chão, até a faxineira chegar mais tarde e sacudí-lo. Tentou levantá-lo, fazer-se ouvir. Nada. Nos seus olhos, viu: ele não estava ali. Jamais se imaginaria em que memória ele tinha escolhido morar.
ANA LÚCIA GOSLING