Thereza Christina Rocque da Motta comparece ao AC Encontros Literários desta semana e nos fala de sua bela trajetória literária

Foto: Vitor Vogel

Thereza Christina Rocque da Motta, nossa convidada desta edição, tem um currículo respeitável. É poeta, editora, tradutora e formada em Direito. Foi também jurada de Tradução do Prêmio Jabuti (2018). Publicou mais de 20 livros de poesia. Fundou a editora Ibis Libris (@ibislibris) em 2000. Lançou recentemente (agosto/2021) o selo feminino MAAT, em comemoração aos 21 anos da editora Ibis Libris. E não é tudo. O que faltou falar você vai saber lendo nossa entrevista exclusiva com ela. Confira!

 

ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?

Thereza Christina Rocque da Motta: A literatura entrou muito cedo, a partir dos livros de contos de fadas que eu ganhava dos meus pais, da Bela Adormecida, Branca de Neve e Cinderela, em edições de grande formato, ou bem pequenos, como A princesa e a ervilha e O gato de botas. Os livros povoavam a minha infância. Meu pai tinha uma biblioteca enorme quando moramos em Montevidéu, e o cheiro dos livros me fascinava. Mas foi aos 10 anos, no 4º ano primário, que eu “vi” algo que estava escrito numa crônica de Cecília Meireles, “A arte de ser feliz”. Tínhamos que fazer uma leitura silenciosa em sala de aula do colégio Chapeuzinho Vermelho, em Ipanema, e logo no primeiro parágrafo, ela descrevia um ovo de louça azul onde um pombo branco vinha pousar, e, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu imediatamente levantei a cabeça e “vi” o pombo no ar. Que visão maravilhosa eu tive naquele momento! De poder ver algo que estava no texto. E foi Cecília Meireles quem que deu essa visão. Creio que, a partir daí, eu entendi o que era literatura.

 

AC: Além de escritora, você também é editora. O que poderia nos falar sobre essa atividade?

 

A editora Ibis Libris foi fundada por Thereza Christina Rocque da Motta em 2000. Foto: Reprodução internet.

TCRM: Ser editora entrou sem querer na minha vida. Quando percebi, eu já estava editando o Jornal Análise, do DCE do Mackenzie, e depois os livros de um grupo de poetas que fundamos na universidade. O Grupo Poeco – Só Poesia existiu por quase três anos, entre janeiro de 1980 e dezembro de 1982. Nesse período, lançamos cinco antologias e vários livros coletivos e individuais. Quando nos formamos em 1981, continuamos por mais um ano por causa do III Concurso Mackenzie de Poesia, até lançar a última antologia, Ensaio V, no final de 1982. Em 1999, voltei a morar no Rio. Um ano depois, abria a Ibis Libris para lançar o livro de poesia de um amigo, em agosto de 2000. Desde então, não parei mais. Eu tinha encontrado a minha vocação, que não era ser advogada, nem professora de inglês, atividades que exerci por 20 anos. Continuo tradutora desde 2000, mas ser editora toma todo o meu tempo. A Ibis Libris existiu informalmente até 2002, quando tive de abrir a empresa para continuar funcionando. O que começou informalmente tinha se tornado profissional. Assim, eu tenho duas datas de fundação, em 18 de agosto de 2000, quando lançamos Poesia profana, de Ricardo Muniz de Ruiz, e 2 de maio de 2002, quando registrei a Ibis Libris. Em 2022, vou poder comemorar 20 anos de novo, pois em 2020 a pandemia me impediu.

 

 

AC: Como se dá sua prática de escrita? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?

TCRM: Já escrevi todos os dias durante 15 anos, a ponto de ter 20 livros inéditos, que publiquei em 2014, em dois volumes (Folias e Horizontes), para não publicá-los individualmente. São aqueles que chamo de “poemas avulsos”. Mas, a partir de 1997, comecei a escolher temas para estudar e escrever sobre eles, como os livros Odysseus & O livro de Pandora, Marco Polo e a Princesa Azul, As liras de Marília e O mais puro amor de Abelardo e Heloísa. Cada um levou seu próprio tempo para ser escrito. Alguns foram escritos em 15 dias, outros levaram meses ou anos para serem terminados. Eu releio e reviso tantas vezes quantas forem necessárias até não querer mudar mais nada. Mostro para alguns poetas, amigos que se interessam pela minha poesia. Mas não escrevo mais só poesia. Passei a escrever crônicas e depois contos, que também irei lançar em 2022.

 

 

Havê-la enquanto se vive, lançado pelo selo MAAT da editora Ibis Libris, é a mais recente obra da autora. Foto: Reprodução internet.

AC: Inspiração ou transpiração: o que vale mais?

TCRM: Para cada momento de inspiração, existe muito mais de transpiração, mas todos têm que que ser inspirados. A inspiração continua ao longo do trabalho de revisão e de pequenos ajustes. Por vezes, troco o título, ou corto o texto, ou escrevo mais. Aprendi a me organizar para escrever. Não é uma atividade aleatória. Quando me proponho um tema, eu sigo até o fim. As liras de Marília levaram exatos nove meses, desde a ideia de escrever os poemas até o lançamento, em 4 de outubro de 2013, aniversário de Maria Dorothea Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu. Eu dou voz a mulheres históricas, mas também às literárias, como Capitu e Sheherazade (tema dos meus contos árabes, como uma continuação de As mil e uma noites). Capitu baixou em mim para se defender. De uma frase dita por Domício Proença Filho, que publicou Capitu: memórias póstumas, escrevi como se fosse um diário da personagem mais famosa da literatura brasileira, dizendo por que ela jamais teria traído Bentinho. Toda mulher tem direito à defesa e, por ter sido advogada de família, eu não me conformava com a condenação de Capitu. E descobri que outras mulheres que leram meu livro pensavam o mesmo. Também fiz a defesa de Guinevere (ainda inédito). Mesmo ré confessa, ela tinha razões para trair Arthur. Ouvir as mulheres, dar voz a elas é uma das facetas do meu trabalho como escritora. Daí toda transpiração é necessária para dar vazão à inspiração.

 

 

Capitu, de Thereza Christina Rocque da Motta. Foto: Reprodução internet.

AC: Como lida com o fantasma da página em branco? Isso acontece com você? 

TCRM: Não acontece comigo, porque não sou obrigada a escrever quando não quero, ou não tenho o que escrever. A escrita surge espontaneamente, ou depois de um longo processo de meditação e estudo sobre o assunto. O mais puro amor de Abelardo e Heloísa, da mesma forma que Capitu, surgiram depois de 40 anos de processamento dentro de mim. Quando o texto foi escrito, brotou sozinho, não tive que provocá-lo. A história de Abelardo e Heloísa estava dormente desde os 13 anos, quando assisti a uma peça de teatro sobre eles. Dom Casmurro eu li aos 15 anos e só fui escrever aos 55. A escrita pode ser voluntária. Mas, quando começo, não sei como vou terminar. Eu raciocino enquanto escrevo. Foi algo que aprendi a fazer escrevendo diários por 30 anos, entre os 10 e os 40 anos de idade, que abandonei quando passei a usar o computador em 1995. Mas ainda tenho cadernos de anotação. E blogs. Sessenta blogs. Assim, tudo o que escrevi fica registrado em algum lugar. Mas, enquanto não escrevo, ou não me ocorre nenhuma ideia, eu espero. Já escrevi todos os dias por 15 anos. Ainda tenho vários livros inéditos escritos nesse período, mas este ano me propus um desafio e escrevi 33 poemas em um mês, mais de um poema por dia. E será o livro que vou lançar ano que vem em homenagem a T.S. Eliot e ao centenário de A terra devastada, publicado em 1922. Já fiz isso em Lilases, escrito em 1997 e lançado em 2003. São 22 poemas escritos em três horas e meia. Como vê, não há regras para escrever. O texto é que tem que querer ser escrito. Se nada me ocorre, não há o que escrever. Porque, quando o poema quer sair, não há o que o impeça.

 

AC: Um livro marcante? E um escritor marcante?

TCRM: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector. Foi o livro que me fez querer escrever poesia. Escritores marcantes há vários, mas posso citar, além de Clarice, Mário de Andrade, Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Hilda Hilst, João Cabral de Melo Neto, Olga Savary, Neide Archanjo, Paul Éluard, André Breton e Fernando Pessoa. Eu não teria começado a escrever sem eles.

 

AC: Projetos futuros: o que vem por aí nos próximos meses?

TCRM: Como já disse, tenho vários livros inéditos, mas, para o próximo ano, já estão alinhados Sheherazade: as novas lendas de as mil e uma noites e O jardim de jacintos de Madame Sosostris, em homenagem a T.S. Eliot. Vou publicando à medida das minhas possibilidades. Em geral, faço três livros por ano. Já publiquei um a cada três anos, ou um por ano, até chegar à cota atual para dar vazão ao que tenho guardado.

 

AC: Sei que você já atuou como jurada do Prêmio Jabuti. Como foi essa experiência?

Thereza Christina Rocque da Motta foi jurada do Prêmio Jabuti (categoria Tradução) em 2018. Foto: Reprodução internet.

TCRM: Foi maravilhosa. Nunca pensei que fosse me divertir tanto ao ver tantos livros de excelente qualidade tão bem traduzidos. A diversão ficou por conta da novidade. Nem todos eu sabia que existiam. Outros eu conhecia o texto e o tradutor, mas não sabia que tinham sido lançados. Foi uma experiência inédita. Se eu soubesse que seria tão bom, teria começado a fazer isso há mais tempo. Como tradutora, foi um reconhecimento.

 

 

AC: Entre os seguidores do canal Literatura do portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica poderia dar a eles?  

TCRM: Escrevam muito, estudem o que estão fazendo, conheçam as regras gramaticais, leiam muito e não desistam. É fácil errar. O difícil é manter a meta. Se não amar incondicionalmente o que faz, você não foi feito para escrever. Escrever exige dedicação. Os grandes escritores são aqueles que não desistiram. Escrever para mim é como respirar. Se eu não escrever, vou sufocar. Haverá muitas dificuldades ou empecilhos. Siga em frente, atravesse, passe por cima, contorne os obstáculos, peça ajuda. Realize seu sonho. Se desistir, não era sonho: era ilusão. Escrevo desde os 15 anos, quando me dei conta de que era o que eu queria fazer. Passei muito tempo pensando que fosse um hobby e não uma profissão. Eu teria que ter uma atividade “normal”. Escrever não era visto como atividade comum. Mas muitos vivem de escrever, mesmo que não vivam de livros vendidos. Essa já é outra história. Preferi ter leitores a concorrer a prêmios. Dediquei-me a publicar meus livros e ir ganhando leitores ao longo do caminho. Hoje são mais de 40 anos de poesia. Relevei os concursos. Preferi ser lida. O retorno de quem lia meus poemas era mais importante do que receber um prêmio sem que ninguém conhecesse meus textos. Fiz o caminho inverso dos que estão começando, que querem ser reconhecidos desde a estreia. Não espere louros. Faça o que ama, senão não valerá a pena, mesmo que os louros venham. Aos 19 anos, Hilda Hilst me disse que eu era poeta depois de ler meus primeiros cem poemas, que reuni num caderno em espiral. Eu acreditei nela e segui em frente, mesmo sem saber para onde estava indo. Chegar aqui faz parte de eu ter acreditado que ela estava certa. Sempre datei meus poemas. Faço isso até hoje e me perguntam por quê. No caderno que Hilda leu, ela percebeu que eu estava evoluindo e que estava seguindo na direção certa por causa das datas. Eu chegaria lá sozinha, Hilda disse à minha mãe, sua amiga desde o colégio, que levou meus poemas para ela ler, para saber se eu realmente era poeta. Hoje, serve para eu me lembrar de onde eu estava quando escrevi o poema, como uma arqueologia pessoal, um mapa que me indica onde eu estava. Para Hilda, serviu para mostrar que eu havia progredido desde meu primeiro poema. Para os outros, mostra que consigo escrever a qualquer hora. Basta ter as condições ideais de temperatura e pressão, papel e lápis à mão, ou até mesmo o celular. Se não fizer parte da sua fisiologia, você não é escritor. Escrever independe de querer. Hilda dizia que ela tinha muito a escrever, por isso teve que começar cedo, senão não daria tempo. Leiam muito, escrevam muito, exercitem muito. Dizem que Mario Quintana, ao ler uns versos de um jovem poeta, disse: “Escreva, escreva, escreva e me volte daqui a vinte anos”. Tem que ser visceral. Para mim, é o ar que respiro. Eu não quero fazer outra coisa.

 

AC: Para encerrar, por favor, deixe aqui uma amostra de seu trabalho como autora.

Afora os dias

Para Leila Oli, in memoriam

afora os dias

ressurgiremos na cabeça das manhãs

apontando um indizível novelo

que se desenrola

além de toda a paisagem

por trás dos olhos fechados do ontem

e as pálpebras do amanhã.

dizei

o que não foi dito até agora

por absoluta falta de tempo.

depositai

os segredos na urna funerária

do sempre.

ali restarão além de toda a memória.

ficarão palavras não ditas

verbos ásperos sobre a pele

silêncios antes de dormir.

fazei

por todos o que fazeis por vós.

a vida não termina

mesmo quando terminamos.

continua em alguma língua

que repita as nossas palavras.

Rio de Janeiro, 21/08/2019 – 8h47

 

Bem, é isso. Até a próxima!

ATENÇÃO: Assista também as lives com a editora e autora :

PARTE 1 :

PARTE 2:

 

César Manzolillo

 

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LIVES
AC Encontros Literários

AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (live) de César Manzolillo.

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).