“O amor é uma força“, disse na minha crônica O AMOR EM TEMPOS DE QUARENTENA.
Mas o amor romântico é, também, uma cadeia de paradoxos. A imagem harmônica de segurança e de companhia é só um dos traços de um conjunto de sentires complexos, às vezes contraditórios e, ainda assim, ideal desejado.
Nesses dias, veio-me à memória um poema de Vinícius de Moraes (falo à frente). E, pensando nas incoerências do amor, cheguei à lembrança do conhecidíssimo soneto de Luís de Camões, talvez o mais popular da nossa língua: “Amor é fogo que arde sem se ver”.
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor
Camões abusa das antíteses para mostrar as contradições que o sentimento provoca: “ferida que dói e não se sente”; “dor que desatina sem doer”, “nunca contentar-se de contente”, “cuidar que ganha em se perder”. O amor é pura contradição, paradoxo. As imagens são intensamente contrastantes (o vencedor serve ao vencido; estamos solitários na multidão; somos leais a quem nos mata) e juntá-las no mesmo verso, na mesma imagem mental construída, nos dá a ideia da gangorra de altos e baixos emocionais que o sentimento provoca.
Além do uso da antítese, o poeta apresenta seu argumento de forma muito lógica. Não como um devaneio poético, mas de uma forma estruturada: nos 11 primeiros versos, ele enumera as contradições para defender seu ponto de vista: o amor é tão contrário a si que é difícil entendermos como nos provoca prazer sentí-lo (conclui nos 3 últimos versos).
Esse jogo entre prazer e dor merece ser ressaltado também. As imagens não são só essencialmente opostas como oscilam entre alívio/gozo e sofrimento: estado de dor e anestésico; prisão e vontade; vencedor subserviente ao vencido; lealdade ao que nos mata.
Camões é um dos maiores poetas da nossa língua e, com delicadeza e maestria, nos conquista não só pelo prazer literário em si, relacionado ao jogo poético, versos decassílabos perfeitos, palavras, sons, imagens criadas. Faz mais: provoca no leitor a própria identificação com a ebulição que o amor provoca. As contradições são inerentes ao sentimento, não apenas ilustram o jogo estrutural, por isso as reconhecemos dentro de nós.
Mas eu dizia que tudo começara num poema de Vinícius. Chama-se “Soneto do maior amor” e fala de outra contradição.
Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.
E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.
Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer – e vive a esmo
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.
Nesse poema, as contraposições do amor ganham contornos especiais e têm a ver mais com o pensamento do narrador (eu lírico). O sentimento “amor” não trata do sublime mas de incoerências menores, humanas, egoístas, projeções no outro.
Parece falar de paradoxos românticos, quando, na verdade, faz o leitor questionar a natureza do sentimento. A roupagem romântica do poema e o título hiperbólico (o maior amor) enganam o leitor à primeira vista, mas, quando mergulhamos nas contradições descritas na poesia, não são as do sentimento “amor” que encontramos mas aquelas que estão presentes no próprio narrador: ao ver a amada, fica triste; vê-la descontente, faz-lhe rir; amor que, quando toca, fere; quando fere, vibra.
As antíteses do poema não nomeiam oposições que convivem simultaneamente, mas sugerem rupturas, provocam estranheza no leitor, rejeição a essas emoções. É um amor egocentrado, perverso, que imaginamos doloroso não por jogar-nos numa gangorra emocional mas porque abre rachaduras.
No entanto, tem as vestes de uma declaração romântica. Quando o poeta diz “fiel à sua lei de cada instante”, por exemplo, cria uma imagem de devaneio romântico, sentimento obediente somente às suas leis, livre de rótulos. Mas, no contexto em que diz isso, extraímos que o narrador se debruça sobre sua própria vaidade: um amor sem compromisso com o outro, com o sentir do outro, puramente narcisista (“numa paixão de tudo e de SI mesmo”).
Enquanto o poema de Camões fala do sentimento que, diante da nossa carência, nos provoca humildade (o vencedor serve ao vencido), o de Vinicius fala de outro, declaradamente egoísta (quanto mais feliz você for, mais infeliz me sentirei). O oposto da ideia convencional de amor. Enquanto no poema de Camões, o sentimento é o centro da narrativa, no poema de Vinícius ele se mistura às falhas psicológicas do eu-lírico. A contradição está mais no homem do que no sentir propriamente.
O poeta nos provoca, nos atrai para o romantismo e nos escandaliza com a negação de sua essência, dando ao poema, de uma outra forma, um valor único. Será que acredita o poeta que isso é mesmo amor ou será só uma provocação? Será que vivemos relações assim e as confundimos com relações de amor? Tendo sido escrito em 1938, seria assim as relações aceitas convencionalmente na época que hoje são, gritantemente, perversas para nós? Será que ele as aceitava também ou, ao contrário, à frente de sua época, via-as como disfuncionais e seu poema nos chama atenção para isso? Será ironia ou verdade o que diz?
Penso não interessar a nós “o que o poeta pensou”. Para mim, o papel da poesia (da literatura, da arte) é agitar o pensamento, tirar-nos da zona de conforto, desmontar os cenários para obrigar-nos a refletir como eles deveriam ser construídos. A quantidade de questões abordadas pelos dois poemas nos permite reflexões profundas. E esse é o grande barato!
Se percebo que um poema está na minha cabeça por dias e decido que cabe aqui nesse contexto e não numa mensagem de “dia dos namorados”, estou construindo um pensamento crítico não só sobre arte mas sobre escolhas de vida. Se sua beleza obscura, contida na delícia das suas estrofes e da sua linguagem fluida, me traz à lembrança questões tratadas por outros poetas, ele me soma mais do que, originalmente, poderia prever o poeta. As conexões sempre nos enriquecem.
Fico com Camões, aceitando que o amor é prazer e dor, contradição. Rejeito a ideia de relações como a desse poema de Vinícius, autor de tantos outros, verdadeiramente românticos, que nos fazem suspirar. Converso com vocês sobre beleza e vida numa manhã de domingo, ainda isolada pela quarentena.
E, de novo, a arte me/nos salva! E o amor – o verdadeiro amor – também!
ANA GOSLING