A felicidade autêntica é um ato permanente de revolução contracultural
“Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o Sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazerQueria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração”(Epitáfio[1])
O tempo verbal da linda canção dos Titãs, citada na epígrafe deste artigo, remete-nos a um futuro do pretérito que não aconteceu e estranhamente não costumamos nos atentar. Mas este ‘lapso’ deve ser combatido – como um ato ético norteado por um imperativo de bem vivermos e bem agirmos autenticamente. No centro desta questão está o tempo – este Cronos inexpugnável! Neste artigo de hoje, o último do ano de 2025 (!), quero abordar o tempo e a necessidade, nos dias atuais, para uma pausa reflexiva de autoquestionamentos, voltada para um caminho de autoconhecimento e talvez uma felicidade autêntica.
Parece meio óbvio falar sobre isto nesta época do ano. Mas falo de algo tão simples quanto poderoso, afinal o tempo é a mais preciosa forma de requinte que temos à disposição. Vou falar também sobre o mito de Cronos, o deus do tempo e também uma articulação de alguns conselhos do filósofo estoico Marcus Tullius Cícero[2], considerado um dos maiores oradores romanos. Escolhi para isso uma de suas obras, Para saber envelhecer[3], onde vemos o filósofo proferir algumas orientações sobre o curso natural da vida, e ao mesmo tempo faço um contraponto com nossa atualidade e como é indispensável a tentativa (!) de buscar um modo de vida desgarrado do que o senso comum tenta nos arrastar. Um modo de vida mais genuíno porque o ‘tempo não para’ (como se diz por aí) e nós só dispomos deste instante-já[4].
A questão mitológica do deus do tempo é amplamente abordada na pintura, na literatura, na música etc. Salvador Dalí pintou na década de 1930 a Persistência da memória[5], com as imagens de vários relógios espalhados e derretendo num deserto. Já Hesíodo, poeta grego do século VIII a.C., nos fala assim em seu poema Teogonia, sobre a origem dos deuses:
“E Réia, subjugada por Crono, pariu filhos insignes, Héstia, Deméter e Hera sandália-dourada, e o altivo Hades, que sob a terra habita sua casa com coração impiedoso e o astuto Zeus, pai de deuses e varões, cujo raio sacode a ampla terra”. (450 a 455)[6]
Cronos é o deus titã do tempo inexpugnável, filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra). Como nos conta o poeta Hesíodo, a pedido de sua mãe, Réia, tornou-se senhor do céu, castrou o pai com um golpe de foice e em seguida jogou os testículos no oceano. Do sangue que brotou, quando atingiu a terra, teriam surgido os gigantes e as erínias. E da espuma dos testículos, quando tocaram a água do Mediterrâneo, ao sul da ilha de Chipre, surgiu Afrodite[7]. Cronos se casou com Réia, sua irmã, que lhe deu seis filhos: três mulheres – Héstia, Deméter e Hera e três homens – Hades, Posseidon e Zeus. Mas com receio de ser destronado, Cronos engolia os filhos logo no seu nascimento. Engoliu todos, exceto Zeus, que a mãe escondeu. Então, quando cresceu, resolveu vingar-se do pai. Pediu ajuda a Métis, a deusa da prudência, que ofereceu a Zeus uma poção mágica que fez Cronos vomitar seus filhos engolidos. Seguiu-se assim a sucessão e Zeus assumiu o lugar como senhor dos deuses, banindo os titãs para o tártaro. Sobre isto, na pintura, temos uma última referência, que é a obra do espanhol Francisco de Goya, Saturno devorando seus filhos, que está no museu do Prado em Madri. Na pintura, com aspecto sombrio, uma representação inequívoca do deus do tempo, eterno e absoluto, que reina soberanamente sobre os humanos.
De volta agora para Cícero, o estoico romano do século I a.C., temos um contexto histórico de profundas mudanças políticas e sociais. Cícero nasceu numa família aristocrática. Estudou com os melhores professores e segundo os biógrafos, foi um aluno bastante dedicado. Foi advogado, político, embaixador, tendo exercido diversos cargos em nome da república romana. Foi também um dos mais célebres oradores de sua época, além de filósofo. Mas sua principal contribuição talvez tenha sido a de divulgar o pensamento grego das escolas do helenismo, sobretudo o estoicismo, para a história do pensamento ocidental. Cícero pode ser considerado, por isto, um dos grandes continuadores (uma ‘ponte’) entre a ancestralidade grega e o contexto romano de sua época. E sem dúvida o brilhantismo de seu pensamento é uma fonte importante de formatação das ideias dos estoicos para nossos dias.
O estoicismo é uma das escolas do helenismo, fundada por Zenão de Cítio, no século III a.C. Uma escola bastante democrática e que buscava horizontalizar o ensino da filosofia para todos – homens, mulheres, livres ou escravizados. Uma escola muito voltada para o fortalecimento de valores éticos, cujas palavras de ordem são a moderação, o equilíbrio e afastar-se dos excessos, buscando o autoconhecimento e o autodomínio. Um convite à reflexão para um agir mais autêntico e para pensar sobre o que depende de cada um(a).
Cícero está situado na última fase do estoicismo (fase imperial ou tardio, que vai mais ou menos do século I a.C. ao século II d.C.), ao lado de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Mas quais são os conselhos de Cícero sobre o tempo para nós? Na obra Para saber envelhecer, escrita por nosso filósofo já numa idade avançada, ele dirige-se a alguns amigos de modo bastante articulado e pontua sobre alguns aspectos do curso natural da vida, como vemos na passagem a seguir:
“Quanto a mim, preferi ser velho por um tempo mais curto do que envelhecer antes do meu tempo. Consequentemente, ninguém até o presente desejou me ver, a quem eu tenha sido negado como comprometido. Mas, pode-se dizer, tenho menos força do que qualquer um de vocês. […]
O curso da vida é fixo e a natureza admite que seja conduzido em uma única direção e apenas uma vez; e para cada fase de nossa vida há algo especialmente adequado; de modo que a fragilidade das crianças, bem como o elevado ânimo da juventude, a sobriedade dos anos mais maduros e a sabedoria madura da velhice, todos têm certa vantagem natural que deve ser aproveitada em seu tempo apropriado.” (P. 28)
E a pergunta que fica é: o que fazemos com este tempo presente que nos é ofertado? Quais são nossas escolhas? E ao mesmo tempo Cícero também reforça as questões da prudência e do autoconhecimento para pensarmos e entendermos este fluxo natural do tempo.
Um pouco mais adiante, Cícero nos lembra de fazermos o exercício filosófico, uma prática pedagógica do estoicismo, para uma reflexão sobre as escolhas que fazemos cotidianamente. E assim tentarmos, do melhor modo possível, seguir um bem viver consigo e com os demais – e por si isto já é bastante revolucionário nos dias de hoje. Eis o que pontua o filósofo:
“[…] a proximidade da morte, que, deve-se admitir, não pode estar muito longe de um homem velho. Mas que pobre caduco deve ser ele, que não aprendeu no curso de uma vida tão longa que a morte não é algo a ser temido? […]
Afinal, quem é tolo a ponto de ter certeza, por mais jovem que seja, de que estará vivo à noite? […]
A morte é comum em todas as fases da vida. Sim, você vai dizer; mas um jovem espera viver muito; um velho não pode esperar fazer o mesmo. Bem, ele é um tolo se realmente esperar por isso. Pois o que pode ser mais tolo do que considerar o incerto como certo, o falso como verdadeiro?” (P. 43)
O tema da morte é bastante presente em diversas escolas de filosofia. Justamente porque um dos maiores (talvez) propósitos da Filosofia é provocar uma reflexão sobre a felicidade autêntica, que está fundeada longe dos temores mais comuns como a finitude. E Cícero orquestra essa ‘partitura musical’ de pensamento. Ele nos provoca, a meu ver, a tentar uma aplicação prática (como é próprio dos estoicos) da Filosofia à vida comum, de qualquer um, a qualquer tempo.
E agora, um dos mais belos conselhos do romano sobre um direcionamento ético para um bem viver articulado com o sentido natural do curso da vida e sobre o que depende de cada um(a) – um bem viver aqui e agora:
“Mas, para mim, nada parece longo em que haja um ‘último’, pois quando este chegar, todo o passado terá desaparecido, somente restará o que você alcançou pela virtude e por ações corretas. Na verdade, as horas, os dias, os meses e os anos se vão, nem o tempo passado jamais volta, nem o futuro pode ser conhecido antecipadamente. Qualquer que seja o tempo concedido a cada um para a vida, com isso ele estará fadado a se contentar.
[…]
Pois um curto período de vida é o suficiente para viver bem e com honra” (P. 44)
As palavras de ordem do estoicismo, como vimos, gravitam em torno da harmonia, do equilíbrio, do voltar-se para si e a busca permanente pelo autoconhecimento. Fazendo um contraponto com nossos dias, sobre as questões urgentes, que atormentam nosso dia a dia e a necessidade (!) de nos voltarmos para os valores e ensinamentos da antiguidade clássica, notadamente o estoicismo, como brevemente falamos aqui.
Recentemente li num artigo o termo cronopatia, a incapacidade de se concentrar no aqui e agora. E acho que esse termo carrega um diagnóstico bastante delimitado da nossa experiência cotidiana. Porque somos ‘seduzidos’ pelo que virá. Perdemos gradativamente a capacidade de concentração no momento presente. Em dar atenção ao outro/outra que está ao lado… A sedução do ‘time is money’ nos adestra para monetizar as coisas/pessoas…Mas e o que fazemos aqui e agora? E nossas escolhas? São questionamentos éticos que estão interligados e o tempo é o grande maestro desta orquestra. O autoconhecimento – nunca foi tão atual e tão necessário. E Cícero mergulha neste universo. Este autoconhecimento passa também por VOLTAR-SE PARA O QUE DEPENDE DE VOCÊ e não ter expectativas. Ser feliz hoje em dia é um ato contra cultural: livrar-se das obrigações e imposições colocados pelo mercado, pelas redes sociais, pelo julgamento do outro…Ser autêntico é um ato revolucionário! Isso tem me motivado muito ultimamente. Romper rótulos, encarar com coragem esse mundo preconceituoso e rotulador.
E agora, relendo o artigo, lembrei de uma música (Marcas do que se foi[8]) que é marcante para a época do ano (olha o tempo) e que carrega algumas reflexões éticas, remetendo a um outro, um coletivo, um bem-viver em harmonia, uma vontade de viver:
“O tempo passa e com ele
Caminhamos todos juntos
Sem parar
Nossos passos pelo chão
Vão ficarMarcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer”
E assim, deixo meu fraternal abraço a você, cara leitora e caro leitor. E desejo, verdadeiramente, que bem aproveite e viva intensamente, com amor, cada instante-já que se lhe apresenta. Porque só temos este instante (mesmo) para ser feliz autenticamente, numa revolução contracultural.
Feliz Ano Novo!
Até 2026!
[1] Compositores: Sergio Affonso / Eric Silver
Letra de Epitáfio © Warner/chappell Edicoes Musicais Ltda
[2] Nasceu em 03 de janeiro de 100 a.C e morreu em 07 de dezembro de 43 a.C.
[3] CÍCERO, Marco Túlio. Para saber envelhecer. Traduzido por Fábio Meneses dos Santos. Jandira, SP: Principis, 2021.
[4] Termo cunhado por Clarice Lispector na obra Água-viva.
[5] Obra do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque desde 1934.
[6] HESÍODO. Teogonia. Tradução de Christian Werner – São Paulo: Hedra, 2013.
[7] Há uma pedra no litoral sul da ilha de Chipre até hoje muito visitada, chamada a Pedra de Afrodite.
[8] Compositores: Zurana
Letra de Marcas do que se foi © Sistema Globo De Edicoes Musicais Ltda











