CONTO DE QUINTA: Dinah

com César Manzolillo

 

 

DINAH

 

Dinah morava no último andar de um prédio malconservado de uma rua erma da zona sul da cidade. Noventa e quatro anos, viúva há sete. Os vizinhos comentavam que coisas estranhas vinham acontecendo no apartamento da mulher desde que o marido morrera. Nós nos conhecemos em outra vida, um pedaço de mim está indo embora, bradou, inconsolável, durante o funeral do companheiro. Formavam um casal muito unido, e Dinah nunca mais foi a mesma desde que Leopoldo caiu da janela da sala justamente numa sexta-feira 13 de agosto. Seguiu-se uma longa investigação; a viúva foi interrogada várias vezes, mas não foi possível chegar a uma conclusão acerca do que ocorreu.  Barulhos esquisitos, gritos, uivos, vozes e até latidos provenientes do oitavo andar passaram a ecoar pelo edifício a qualquer hora do dia ou da noite. Cada família do local tinha uma história para contar envolvendo a velhota do 801, como Dinah era conhecida entre os demais moradores. Ela pouco saía de casa, às vezes ficava vários dias sem ser vista por ninguém, o que gerava boatos sobre um possível falecimento. Mais de uma vez a polícia foi chamada para supostamente socorrê-la. Ela, contudo, sempre era encontrada viva e ativa e, aos berros, acabava expulsando todo mundo de sua porta: homens da lei, vizinhos, faxineiros e porteiros. Numa das ocasiões em que a polícia foi acionada, quem atendeu foi uma mulher desconhecida de todos. Bonita e elegante, devia ter por volta de 30 anos. Assim como Dinah, ostentava um faiscante par de olhos azuis. Apresentou-se como Denise, a enfermeira da dona da casa, e foi logo informando que esta havia saído com a filha. Filha? Que filha é essa que apareceu assim de repente, perguntou o senhor Frederico, do 602, um advogado aposentado que sempre acompanhava os policiais nas operações. Ninguém ali sabia da existência dessa filha ou de qualquer outro parente. O sargento Matias resolveu aproveitar a oportunidade para conhecer a casa por dentro. Ele, que quase sempre era quem atendia as chamadas do edifício, nunca havia conseguido examinar de verdade o interior do imóvel. Mas achava que o lugar era mesmo estranho. Inventou para a tal enfermeira estar de posse de um documento que lhe autorizava a entrada. Denise relutou um pouco; por fim, acabou permitindo a entrada do sargento e do cabo Santiago. Os dois começaram a inspeção pelo quarto no final do corredor. O aspecto era de um cômodo normal, exceto por um detalhe. No chão, ao lado da cama, diante de um enorme cachorro empalhado, duas tigelas, uma com água, outra com comida. O animal, de boca aberta, deixava à mostra os dentes afiados. Parecia pronto para o ataque. O cabo Santiago estremeceu. Trazia nas nádegas marcas de mordidas caninas desde os 8 anos de idade. Poderia ter morrido na ocasião, não fosse a intervenção de um primo mais velho. O aposento ao lado era o quarto de Dinah. No cômodo espaçoso, uma cama de casal forrada com uma colcha de tecido brocado, um armário, uma cômoda repleta de perfumes e de bibelôs um tanto cafonas, além de um grande espelho. Embaixo da cama, um baú de mogno, desses vistos nos filmes de pirata, trazia uma etiqueta escrita com letras cuidadosamente desenhadas, no mesmo estilo daquelas feitas pelos copistas da Idade Média, onde se lia Pedaços de Leopoldo. No interior da arca, um dedo envolvido por uma aliança de ouro, mechas de cabelo grisalho, dois dentes amarelados e alguns pedaços de unha justificavam a informação contida na etiqueta. Na sala de estar, chamava a atenção um quadro com a figura de uma mulher jovem e linda. Mas esta é a enfermeira Denise, exclamou o cabo Santiago. Enfermeira Denise? Que história é essa? Essa aí sou eu no frescor dos meus 30 anos de idade, explicou Dinah, com uma pitada de nostalgia. Aceitam uma xícara de chá, um pedaço de bolo de limão, continuou ela, surpreendentemente amável e receptiva. Fui eu mesma que fiz. Receita especial, está na família há anos. Estou tão feliz que tenham vindo me visitar. Sou uma pessoa muito solitária, sem parentes, sem amigos. Os anos me pesam. Desde que meu marido morreu… Vocês souberam da história, eu suponho. As notícias, especialmente as más, se espalham rápido. Que tristeza. Minha única companhia é o Rex, um cãozinho adorável, tão dócil, tão carinhoso. Rex, meu querido, venha cumprimentar as visitas. Em resposta ao chamado, latidos provenientes do quarto no fundo do corredor foram ouvidos, mas o animal não apareceu. Ele é um pouco tímido e às vezes estranha os estranhos, informou Dinah, soltando uma sonora gargalhada assim que se deu conta do trocadillho involuntário. Mas ser estranho não é defeito. Estou a par do que falam de mim aqui no prédio. Gente fofoqueira, desocupada e inútil. Cuidem de suas próprias vidas, criaturas infelizes. Sei que vocês estão aí fora no corredor, não pensem que me enganam. Preciso me sentar. Sinto uma tonteira. Está tudo girando, concluiu com um fio de voz. Nesse momento, as luzes se apagaram, e um vento gélido invadiu a sala. O prédio começou a tremer. O quadro com o retrato de Dinah — ou Denise — despencou da parede, e o contato da tela com o chão produziu um estrondo, seguido de uma nuvem de poeira. Cinco minutos depois, quando as coisas voltaram ao normal, Dinah já não estava na sala. Com o sumiço dela, uma sobrinha-neta surgiu para reclamar a posse do imóvel. Este foi posto à venda, mas ninguém chegou a fechar negócio. A polícia, por sua vez, voltou a frequentar o local, especialmente depois que o senhor Frederico, do 602, caiu da janela da sala numa noite de lua cheia, deixando Emília viúva, inconsolável, descontrolada e cada vez mais reclusa.

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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