
com César Manzolillo

AMOR EM TEMPOS DE CHUMBO
¨Amo você¨, ¨não posso viver sem você¨, ¨você é a mulher da minha vida¨. O texto da peça que o Grupo Consciência vinha encenando havia um mês nas dependências do Palácio Universitário era constituído de frases-clichê como essas. A despeito disso, o espetáculo era um enorme sucesso de público e crítica. As apresentações, inicialmente previstas para durar apenas dois finais de semana, tinham sido prorrogadas indefinidamente. Uma adaptação para o cinema a cargo de um renomado diretor também já estava confirmada. Estranhamente, a primeira temporada de Amor em tempos de chumbo, no horário alternativo de um modesto teatro da zona sul, não teve repercussão alguma. Várias sessões precisaram ser canceladas devido à falta de público. Além do mais, nenhum crítico apareceu para fazer a análise do trabalho, apesar dos convites enviados para os principais órgãos da imprensa carioca. O enredo expunha os dramas de uma típica história de amor – Tristão e Isolda, Romeu e Julieta etc. –, com muitas idas e vindas e obstáculos a serem transpostos e, o mais importante de tudo, final infeliz.
– Pedro, acho melhor a gente dar um tempo. Temos objetivos de vida muito diferentes.
– Mas a gente sempre se deu tão bem. Você não percebe que está se metendo numa coisa que não tem o menor sentido?
– Como não tem o menor sentido? Existem pessoas morrendo por isso que você diz não ter sentido.
– É perigoso. Eu tenho medo, Júlia. O seu pai…
– O meu pai é de outra época, ele nunca vai entender mesmo. Pensei que você fosse diferente, mas vejo que me enganei.
O fato é que a encenação no Palácio Universitário mudou o local para melhor. O astral era outro; viam-se pessoas de todos os tipos circulando por ali: jovens, gente mais velha, moradores de vários cantos do Rio. Havia também muitos jornalistas que iam até lá cobrir o evento.
– Olha, Júlia, a gente tá aqui pra estudar.
– O Joel, a Bárbara, o Ivan e sei lá mais quem também estavam aqui pra estudar. E agora estão mortos. Foram torturados até morrer. Choques, pancadas, abuso sexual, fome, frio, sede. Você consegue imaginar? Posso lhe contar histórias terríveis.
– De certa forma, eles procuraram isso. Júlia, eu não quero que você termine como eles. Não posso nem pensar em perder você.
– Procuraram? Eles fizeram isso por mim, por você, por aqueles que ainda nem nasceram. A gente pensa no futuro. Se a gente não fizer nada, essa situação não muda. A nossa luta deveria ser a mesma de qualquer um dotado de um mínimo de sensatez. Me fala com toda a sinceridade, você tá satisfeito com tudo o que está acontecendo?
– Prefiro não me envolver.
– Egoísta é o que você é.
Naquela sexta, a segunda apresentação do espetáculo havia apenas terminado. Como de costume, aplausos entusiasmados, ovação geral. Marina, sentada na primeira fila, tinha assistido à peça na companhia de três amigas. Correu em direção a Júlia, a atriz que, coincidentemente, tinha o mesmo nome da personagem que interpretava, a fim de cumprimentá-la. Falou que se emocionou bastante durante todo o tempo; a história havia mexido muito com ela, pois também vivera uma experiência parecida alguns anos antes.
– Júlia, olha em volta. Repara no cenário maravilhoso que a gente tem aqui. Essas construções imponentes, o Pão de Açúcar e a praia ali pertinho. Não é à toa que esse prédio aqui se chama palácio. Acho que a gente devia sair da aula e aproveitar essa natureza toda. Você tá sempre em reuniões, em passeatas. Além do mais, nem tempo de estudar você tem.
– Olha, me escuta, depois de amanhã, sexta-feira, a gente vai fazer uma viagem pro interior. É só por um final de semana, coisa rápida. Uns companheiros nossos estão começando a se organizar e precisam de ajuda.
– Viagem pra onde? Com quem? Que história é essa agora?
– Pra sua segurança, é melhor você não saber detalhes. Vou dizer lá em casa que a gente vai viajar juntos. Você confirma?
– Você tá maluca, só pode ser isso. É a influência do lugar. Isso aqui já foi uma casa de loucos, um sanatório ou coisa parecida. Sabia que o Lima Barreto esteve internado aqui?
Após a última sessão de sábado, elenco e equipe técnica resolveram ir a um bar das redondezas comemorar o sucesso da empreitada. Horácio, o diretor, chegou trazendo o jornal do dia seguinte. Exibia orgulhoso a crítica da peça escrita por Brígida Eleonora, rigorosa jornalista especializada em artes cênicas, uma das mais importantes e conceituadas do país, que raramente elogiava o que quer que fosse. Em seu texto, ela destacava o ótimo rendimento de todo o elenco, especialmente do casal protagonista, ¨que apresentava visível e comovente entrega na composição dos personagens¨. Já ¨a direção segura de Horácio Botelho conseguia valorizar com criatividade e acerto os poucos momentos cômicos do texto, proporcionando ao público um espetáculo bastante emocionante¨. Sobraram loas igualmente para os ¨figurinos inspirados e atemporais de Eunice Lobo¨ bem como para a ¨luz competente de Eduardo Vieira¨. Não se esqueceu de mencionar ainda o ¨belo e funcional cenário de Gustavo Vasconcelos, construído a partir de materiais simples como madeira e papel¨. A crítica terminava com uma referência a César Maldonado, ¨autor de grandes recursos, futura promessa do teatro nacional¨. Copos erguidos em brinde, sorrisos fartos, jornal passando de mão em mão. A noite daquela turma acabou assim.
Na segunda-feira seguinte, Júlia já deveria ter voltado. Não apareceu na faculdade. Em compensação, homens de cara amarrada, passos firmes e olhar ansioso circulavam pelo campus, causando desconforto entre os membros da comunidade acadêmica. Pedro, sem notícia alguma, caminhava a esmo pelo pátio. Rosa, companheira de luta de Júlia, cruzou com ele apressada e, sem dizer nada, entregou-lhe um pequeno pedaço de papel amassado e sujo. Pedro o abriu. Tinta vermelha. Caligrafia descuidada e minúscula. No canto superior esquerdo, apenas duas palavras: Júlia caiu.
CÉSAR MANZOLILLO

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