

Conhece-te a ti mesmo… Ilustração: ArteCult/ChatGPT
“Conhece-te a ti mesmo[1]”: o imperativo convite da antiguidade ecoa em nossos dias, como um exercício do espelho.
“O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar”.(O que será – à flor da pele[2])
“O que cura é a alegria.
O que cura é a falta de preconceito”.
(Dra. Nise da Silveira)
A vida é mesmo um plural incessante de possibilidades óbvias, mas nem sempre apreensíveis, de interrelacionar-se. Mas para se correlacionar (com) é prudentemente aconselhável um exercício filosófico de auto entendimento. E tentar entender nosso lugar no mundo. Nem em excesso, nem em diminuição. Não há também um ‘manual’ de como ser feliz: cada um de nós é único, com particularidades singulares e momentos de alta e de baixa. Porém, carregamos a ‘partícula cósmica’ da racionalidade, como nos diz o filósofo estoico Marco Aurélio, para que possamos continuamente fazer questionamentos e exercícios filosóficos. É a prática do olhar de cima para si, vendo-se a nós mesmos do alto, num esforço contínuo de auto situar-se e autoconhecer-se.
É a opção que temos da busca de um equilíbrio, um viver harmonizado entre o pensar e o agir, como nos diz o filósofo francês Michel Foucault, na obra A coragem da verdade: o governo de si e dos outros[3]: “é uma parresía[4] ética (…) é preciso questionar a maneira como se vive (p. 130-3). E aqui está o ponto que gostaria de trazer agora para uma reflexão, partindo da proposta de outro filósofo francês, Pierre Hadot, em sua obra Exercícios espirituais e filosofia antiga[5]:
“exercícios espirituais, isto é, práticas destinadas à modificação de si, ao aprimoramento, à transformação de si. Em sua origem, há, portanto, um ato de escolha, uma opção fundamental em favor de um modo de vida, que se concretiza em seguida, seja na ordem do discurso interior e da atividade espiritual: meditação, diálogo consigo mesmo, exame de consciência, exercícios da imaginação, como o olhar lançado do alto sobre o cosmos ou sobre a terra; seja na ordem da ação e do comportamento cotidiano, como o domínio de si, a indiferença às coisas indiferentes, a realização dos deveres da vida social no estoicismo, a disciplina dos desejos no epicurismo.” (p. 335-6)
O universo está posto diante de nós. E o que vou fazer com minha porção cósmica que me foi dada? De longe, não é para se sentir excepcional, mas muito ao contrário, como parte integrante e intrínseca de um todo eternamente existente, convivendo e coexistindo com diferenças mútuas. E como afirma novamente Hadot, este ‘mergulho’ no cosmos, “é bem expressa pelo discípulo de Epicuro, Metrodoro:
‘lembra-te de que, nascido mortal, com uma vida limitada, tu te elevaste pelo pensamento da natureza até a eternidade e a infinitude das coisas e que tu viste tudo que foi e tudo que será.” (p. 294).
Esta tarefa não é minimamente fácil: concentrar-se no presente, livrando-se do passado e das apreensões que o futuro vislumbra. E uma alternativa, como propus no início deste artigo – é uma tentativa de entender nosso lugar no mundo. E este olhar para si é um ato absolutamente voluntário, um convite ao autoconhecimento que atravessa inúmeras camadas de nós mesmos e incontáveis ‘eus’ que às vezes são admiráveis e outras nem tanto. Este olhar para si, como se tivesse com um espelho na mão, remete-nos ao mito africano de Oxum, como nos explica a filósofa Djamila Ribeiro, num trecho de uma entrevista concedida ao jornal O Globo[6]:
“com o espelho na mão, Oxum nos diz que olhar para si significa também assumir as suas sombras e tomar decisões baseadas em quem você é.”.
Este ícone do espelho é uma apropriada provocação não apenas imagética, mas prática – é um olhar para si e, quem sabe, conhecer-se, modificar-se, transformar-se…E em se conhecendo, ajustando e modulando formas de ser, de pensar e de agir no mundo. E há sempre tempo para isso. Mas é necessário, continuamente, o uso do senso crítico (auto), como uma espécie de escudo protetor para nos defender das armadilhas do senso comum.
E no acelerado modus vivendi e modus operandi de nossos dias, muitas vezes e frequentemente não temos a real noção de entendimento do valor do tempo presente. E com um gesto ou uma palavra podemos magoar profundamente um semelhante ou, por outro lado, temos a chance de simplesmente transformar o dia ou uma ocasião de outra pessoa. Paremos um pouco aqui para refletir sobre a autêntica amplitude deste ato de conhecer-se e (re)agir ao que nos cerca.
Podemos ser/ter atitudes intransigentes. Mas em contrapartida podemos ser razoavelmente flexíveis e maleáveis. E isto não vai ‘tirar pedaço’, como se diz por aí. Ao contrário, vai nos permitir viver com mais leveza e harmonia em um mundo com seres mutuamente diferentes. Sobre isso, o filósofo Arthur Schopenhauer, em sua obra A arte de conhecer a si mesmo[7], pondera que:
“Assim como a cera, por natureza dura e seca, derrete-se com um pouco de calor, podendo adquirir qualquer forma, até mesmo pessoas duronas e hostis também podem, com um pouco de cortesia e amabilidade, tornar-se flexíveis e solícitas. Nesse sentido, a cortesia é para o ser humano o que o calor é para a cera.” (p. 25)
Por isso afirmo: não tenhamos medo, nem de castigos divinos, nem de se permitir este auto tour. Não nos condicionemos! Há muito para ser bem vivido, como nos ensina Hadot:
“Por exemplo, os estoicos e os epicuristas convidaram seus discípulos, por razões totalmente diferentes, a concentrar sua atenção no momento presente, libertando-se da preocupação com o futuro e do peso do passado. Contudo, quem pratica concretamente esse exercício vê o universo com olhos novos; como se o visse pela primeira vez, ele descobre, no gozo do presente puro, o mistério e o esplendor da existência; e, como dizia Nietzsche, nós dizemos então sim ‘não somente a nós mesmos, mas a toda existência’.” (p. 298-9)
A vida é mesmo um plural irrefreável de experiências possíveis. Basta que nos permitamos, como ressalta o poeta Ovídio[8]:
“O melhor libertador da alma é o que, para sempre,
Rompeu as correntes que oprimiam o coração.” (vs. 293-4)
Portanto, permita-se este exercício do espelho, do olhar para si, do “conhece-te a ti mesmo”, que são ensinamentos ancestrais, que ecoam através da história do homem, desde África até Delfos, chegando aos nossos dias.
A vida é potente e facetada de possibilidades de momentos de autêntica felicidade. Permita-se. Autentique-se neste caminho.
Por fim, deixo aqui um trecho da letra da música, Quem me leva os meus fantasmas[9] de Pedro Abrunhosa, belamente interpretada por Maria Bethânia:
“Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava de menos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.”
E não esqueçamos que somos uma partícula que compõe a eterna e infinita imensidão cósmica. Não esqueçamos desta condição de existência.
ZAL
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
- HADOT, P. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Tradução Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014.
- MONTEIRO, Fernando J.S. 10 Lições sobre Schopenhauer. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
- SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de conhecer a si mesmo. Tradução Jair Barboza (alemão), Silvana Cobucci (italiano). 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.
- CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
Referências citadas no texto
[1] Esta frase era uma das que estavam inscritas nas paredes do templo de Delfos, que existiu na antiguidade grega antiga, no monte Parnaso. O Oráculo era visitado por pessoas que buscavam uma consulta com a sacerdotisa que guardava o templo.
[2] Trecho da letra da música O que será (à flor da pele). Compositor: Chico Buarque.
[3] FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
[4] Palavra transliterada do grego, que significa fala franca, transparência de discurso.
[5] HADOT, P. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Tradução Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014.
[6] IN Jornal O Globo, de 07 de abril de 2025, Segundo Caderno, p. 1.
[7] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de conhecer a si mesmo. Tradução Jair Barboza (alemão), Silvana Cobucci (italiano). 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.
[8] Poema Remedia amoris, citado por Schopenhauer, p. 33, conforme bibliografia citada.
[9] Composição: Pedro Abrunhosa.











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