BARBÁRIE, em 8 infinitos atos. Roteiro de uma polícia transfilmada

Ilustração ArteCult/DALL-E

 

BARBÁRIE, em 8 infinitos atos
roteiro de uma polícia transfilmada

*Luis Turiba

Cena 1- silêncio…
silenciador foi aposentado
por serviços prestados.
o bang-bang não tem mais lado
é aquele som em repeteco, anacrônico,
ao se ouvir ao longe,
logo se corre, logo se esconde.

Cena 2 – uma criança toma tiros pelas costas
brincava a sorrir com sua bola
(não é o que ela mais gosta?)
recebeu frias balas não perdidas.
sem cerimônia, a morte entrou,
sentou-se à sala e logo se anunciou.

Cena 3 – jogado como um pacote roto,
um semimorto,
num esgoto a céu aberto, sujo, escroto,
ato de injustiça com a próprias patas
a cena é imperdoável – fria, força e farsa – é fato.

Cena 4 – o jovem surtado de crack e de bode,
no mercadinho do bairro, é só delírio.
pegou três pacotes de sabão em pó
e correu para salvar seu furto.
na fuga escorregou no tapete,
caiu como biscoito esfarelado.
um PM, à paisana, vigiava a saída.
puxou sua arma automática
executando-o friamente com 11 tiros
– foi legítima defesa – defendeu-se.
a declaração do PM não se sustenta,
só há uma arma na cena do crime.
o assassino é levado preso em flagrante delito.
no Instituto Médico Legal nota-se
que as balas deformaram
o corpo do rapaz,
sua família teve dificuldades para reconhecê-lo.
(fecha-se o pano)

Cena 5 – uma senhora de 63 anos
reagiu indignada ao ver sua casa invadida.
seu marido foi esculachado por brutamontes, armados até os dentes.
– o que está havendo? quero saber, tenho esse direito.
– o que está havendo?
perguntou, sobre o caos no seu lar.
– fica quieta, gritou o comandante da blitz. num ato infame e covarde
atingiu a senhora no rosto.
levada ao hospital, recebeu quatro pontos na testa.
diante das câmeras de TV,
a “tia” pensou alto:
– meu Deus, que perigo represento?
sozinha, contra uma tropa cheia de ódio.

Cena 6 – Deus sentiu um arrepio gélido, do cóccix à nuca
– era o brilho do punhal verde-amarelo –
conspiração tramada nos quartéis
golpistas, armados de ideias mequetréfes,
nenhum respeito ao voto, ao povo
negação da democracia

o poder pelo poder, à força.

Cena 7 – “- deixa eu entrar, sou a mãe dele,
vão matar meu filho!”
em São Paulo há soldados
armados, amados ou não,
quase sempre perdidos
de armas na mão.
câmeras de vídeo
a marcar pulsações.
desesperos maternos,
fracos corações
quem sangra
é quem sofre:
a população.

Cena 8 – silêncio…
hospital à frente.
ao seu redor, as bocas de fumo funcionam normalmente,
guardadas por soldados
à paisana, com seus fuzis e armas mortais.
fazem parte do habitat urbano do Lins de Vasconcelos,
bairro cravado no fundo do Méier.
são personagens da cena, bandidos
profissionais que defendem à bala seus negócios, seus territórios,
suas honras, seus princípios.
usam tênis de marca e cordões grossos, imitando ouro
de alto quilate.
a médica – comandante da Marinha – toda engalanada, demonstrava felicidade por fazer parte das melhorias do hospital Marcílio Dias.
mãe de dois filhos, a geriatra levou um tiro na cabeça,
enquanto participava de uma solenidade com outros
comandantes.
foi operada ali mesmo, emergencialmente, pois a bala
foi certeira, invadiu seu cérebro.
a médica da Marinha deixou dois filhos e um futuro
promissor.
o inseguro hospital foi cercado por tanques e blindados
faltaram os submarinos.
as crianças continuam brincando de pega-pega, bandidos contra mocinhos.
quem será quem?

 

 

 

LUIS TURIBA

Luis Turiba em Brasilia. Foto de Rose Araujo.

*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos.

@luisturiba

 

 

 

 

 

Author

Pernambucano, carioca, brasiliense, planetário. Rubro-negro e mangueirense. Pai de cinco filhos, avô de cinco netos. O brasileiro Luiz Artur Toribio, conhecido no universo poético como Luís Turiba, inventou e editou a partir de 1985 - ano da eleição de Tancredo Neves/José Sarney para presidente e vice da Abertura Democrática - o primeiro número (1) da revista de invenção poética Bric-a-Brac. Ao longo dos anos 80 e 90 foram confeccionadas seis edições com uma média de 100 páginas e tiragem nunca inferior a mil exemplares, que saíam anualmente com poemas textuais e gráficos; ensaios fotográficos e entrevistas que se fizeram históricas com Augusto de Campos, o bibliófilo e acadêmico José Mindlin; o cantor e compositor Paulinho da Viola; o poeta pantaneiro Manoel de Barros – entrevista feita com trocas de cartas ao longo de seis meses e resultou em 15 páginas na revista -, além da psiquiatra Nilse da Silveira, do babalorixá franco-baiano Pierre Verger; e uma visita-entrevista a Caetano Veloso com a presença de Augusto de Campos. A Bric-a-Brac era editada coletivamente por Luis Turiba, João Borges, Lúcia Leão e o extraordinário designer Luis Eduardo Resende, o Resa, com seu traço inconfundível. A última Bric foi editada em Belo Horizonte em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte de 22 com um artigo histórico de Augusto de Campos comentando as relações do grupo Noigandres com os modernistas Mário e Oswald de Andrade. Mas afinal, quem é Luís Turiba? Jornalista e poeta, cronista da vida do brasileiro comum, Turiba é pernambucano do Recife, “cidade pequena, porém descente”, terra de Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto, Capiba, Luiz Gonzaga e Chico Science. Aos 23 anos, iniciou sua carreira de Repórter no jornal O Globo e depois na editora Bloch/Manchete. A convite, mudou para Brasília, onde foi trabalhar na sucursal do jornal Gazeta Mercantil, editor de Matérias Primas, onde teve a oportunidade de cobrir e conhecer obras e projetos do chamado “Brasil Grande”, como a Transamazônica e o garimpo de Serra Pelada, e outras na região amazônica. Em Brasília, como repórter, ganhou alguns prêmios, entre os quais destacam-se dois Prêmios Essos: um no Jornal de Brasília, contando detalhes de um encontro do seu estagiário Renato Manfredini (no Jornal da Feira do Ministério da Agricultura), o Renato Russo da banda Legião Urbana, com o então todo-poderoso ministro da Agricultura Delfim Neto. O outro Esso foi no Correio Braziliense, com uma cobertura coletiva sobre as áreas públicas brasilienses que estavam sendo legalizadas para a construção de condomínios residenciais para residências de altos funcionários e militares que serviram à ditadura militar. Teve experiências no Jornalismo Político, na Assessoria de Imprensa da Câmara dos Deputados, durante a Assembleia Constituinte que formulou a Constituição de 1988. Na ocasião, assistiu do plenário da Câmara dos Deputados, a famoso discurso do jovem líder indígena Ailton Krenak, que falou vestindo um terno branco e pintando o rosto com pasta preta de jenipapo. Cobriu toda a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral para a presidência da República em 1985. Na ocasião, Tancredo criou o Ministério da Cultura e convidou para ser seu ministro o deputado mineiro José Aparecido. Anos depois, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente, Turiba foi convidado para ser Assessor de Comunicação do MinC na gestão de Gilberto Gil, entre 2002 e 2005. Editou um pequeno livro sobre a política do “Do-In Antropológico”, os Pontos de Cultura e os discursos programático do compositor de “Domingo no Parque” à frente do MinC. Em 2003, produziu os documentários "Gil na ONU" e “A Capoeira no Mundo”, com um programa mundial para a Capoeira. Ambos foram editados em DVDs com o apoio da Natura. Paralelamente à sua carreira de repórter/jornalista, publicou livros de poesia no Rio e em Brasília. Estreou com “Kiprokó”, em 1977, e depois o destaque ficou por conta do premiado “Cadê”, que venceu o Prêmio Candango de Literatura, em 1998. Voltou a morar no Rio de Janeiro em 2010, quando se aposentou do jornalismo. No Rio, publicou três livros de poesias pela editora carioca 7 Letras: “Quetais”, em 2014; “Poeira Cósmica” e em 2020, o “Desacontecimentos”, em 2022. Desde 2023, escreve um romance jornalístico-poético com suas experiências pelo mundo político com histórias vividas no histórico ano de 1968; a prisão pelo DOI-Codi em 1972; a abertura democrática e a Constituinte de 1988; a eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral; a eleição de Lula em 2002; o retrocesso provocado pela eleição do direitista negacionista que tentou um atrapalhado golpe de Estado em 2023. Título do livro que deve ser editado em 2025: “VIVA ZÉ PEREIRA; Aventuras e Desventuras de uma geração”. Ele já avisou: “o livro será um calhamaço de mais de 400 páginas, um rico material iconográfico e as dez principais entrevistas culturais que fiz na minha carreira e pelo menos 100 poemas inseridos na sua narrativa.” Turiba orgulha-se de ter nascido no mesmo ano que o Estádio do Maracanã, onde a seleção brasileira perdeu o jogo final para a seleção uruguaia por 2 a 1 e mostrou ao mundo, segundo Nelson Rodrigues, “todo o seu complexo de vira-latas”. Apesar da data possuir uma aura de trauma coletivo para os amantes do futebol, o personagem em questão considera esta data uma conquista aos avessos. “Quem viveu um “Maracanaço” só poderia ter como compensação o negro Pelé, filho da terra e redenção humana para a conquista de cinco Copas do Mundo. Por isso, o karma da derrota em 50 “não me pertence. Nem a mim, nem à minha geração. Vivemos a glória de uma geração futebolística pentacampeã do mundo. A única. Perdemos o complexo de vira-latas””, costuma afirmar orgulhoso o poeta editor da Bric-a Brac e agora colunista.

One comment

  • Muito emocionado por aqui, com essa prosa-poética do mestre Turiba. Verdade triste e suja dessa parte que fede no Rio de Janeiro. Parabéns pelo texto tocante e profundo.

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