Sobre o que me disse Júlio Rosa

 

Cercou-me um aluno. Profundamente angustiado, queria conversar sobre sentimentos negativos. Às portas de virar um adulto pleno,  não sabia o que pensar quando atingisse 20 anos. Estávamos no estacionamento da escola. Era noite. Uma sexta-feira, um momento em que vou me despindo aos poucos da indumentária de professor.

A porta de meu carro estava aberta, já havia ligado a música. Em meus dedos, um de meus puritos para fumar. O menino se aproximou. Não fumo na frente de meus filhos e alunos. Na verdade, fumo mais quando estou sozinho. Era o que supus para aquela sexta-feira que antevia o fim de semana dos pais. Como muitos me conhecem, sou bom ouvinte. Se tem algo que Papai do Céu me deu foram duas enormes orelhas para ouvir plenamente. Elas têm falhado em algum momento, tanto pelos anos de Heavy Metal como pela paciência limítrofe. Porém, o ouvi. Os demais alunos iam embora. A escola é noturna, do Estado, e numa sexta o que mais que eles querem é ir embora. Quando vemos alunos ficando, demorando para ir, é algo a se preocupar. Como eu que fui abordado, haveria algo a mais do que o normal.

Júlio, o diretor, ao perceber que eu conversava com um aluno, aproximou-se. Seu olhar era de despreocupação. Sacou de um cigarro. Acendi para ele. Em meu processo de ouvinte, passou também a contar de sua vida, de suas naturais frustrações, erros que cometemos, decisões que depois não me levam a nada, uma perspectiva de alguém que conseguiu chegar aos 40 anos, tem uma carreira sedimentada, mesmo com todo o sentimento de que a carreira poderia ter tomado outros rumos, mais positivos, mais rentáveis, enfim, depois de todo um exercício de especulação que eu havia iniciado no menino, mostrando que a não desistência e a persistência são os caminhos básicos, que nós, os pobres, tomamos para que se consiga algo na vida, Júlio me solta uma confissão que, ao fim, será alvo de minha tergiversação: “Hoje, eu me perdoo.”

Respirei depois que ouvi tal confissão. Para aquele menino, que muito de mim ouviu em meus erros, de Júlio em seus erros, ouvir que alguém se perdoava depois de tudo é um exercício de autoconhecimento e humildade. Tenho mais idade que Júlio. Se tem algo que não aprendi ao longo da minha vida é a perdoar. Júlio sim. Sobrávamos nós três na escola. Era necessário fechá-la, passar todas as chaves e adormecê-la para a próxima semana.

O menino seguiu com Júlio. São vizinhos. Eu haveria ainda de dirigir 20 km até minha casa. O trânsito de sexta é ambíguo. Por ser início de mês, estar no mês dos pais, os carros saem com mais frequência. O trânsito estava mais pesado do que o normal. Meu purito fora rápido. Precisava dessa vez de outro para digerir o perdão de Júlio. Não irei, obviamente, expô-lo aqui, apesar de esta tergiversação ser toda baseada nele. Porém, afirmar que conseguiu se perdoar, fumar calmamente e depois voltar afirmar, me fez refletir sobre o ensinamento.

Por que, ainda, não consigo perdoar? Tenho em mim a paciência como característica. Algo que aprendi com o tempo e que a sala de aula potencializou. Para dar aula, é preciso muita paciência. Principalmente para o fundamental. Há dias em que a perco. Minha filha hoje tem talento especial para testar-me o limite. Ela flerta com o perigo. Ao longo da direção, eu vi que deveria já ter alcançado essa capacidade. Por que as pessoas que me fizeram mal, eu também nessa lista, ainda não foram perdoadas? Por que minha paciência anseia por vingança? O que quero vingar?  inclusive, em mim? O que quero punir? Por que punir? Nem aos meus piores alunos eu puno, quando merecem algum tratamento em que se exija de minhas prerrogativas de professor. Volto a pensar em Júlio e em quanto ele já passou para chegar nessa capacidade.

O fim de semana passa. Revejo meus filhos, consigo unir toda a minha família. O fim de semana foi todo de churrasco, bolinho, muita diversão. Rimos muito. Reuni todos os pais em uma festa para os pais. Foi maravilhoso. Apesar da breve chuva.

A semana se inicia. Reencontro Júlio. Temos histórias parecidas quando ao fato de sermos pai. Exponho a ele que passei o fim de semana pensando no que disse. Afirmei que ainda não consigo perdoar. “Calixto, eu precisei. Se não, seria pior.”

 

MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto. Foto: Divulgação.



Coluna de Márcio Calixto

 

 

 

 

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.