Na minha imaginação infantil, todo teatro nobre pareceria com o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Minha primeira referência de excelência.
Era menina quando comecei a frequentar suas poltronas. Mamãe me levava para assistir aos balés. Numa época em que o vestir-se classicamente era exigência. Os homens de paletó, as mulheres em fios de seda e jóias verdadeiras. Minha primeira vez usando meias-calças sedosas, foi para ir lá; um toque de sofisticação ao vestido ballonet.
O balé idílico. As moças flutuando. Eu as imitava, em casa, em quedas pesadas e gestos bruscos, ante minha ausência de estudo e talento. Nos intervalos, descíamos de mãos dadas, mamãe e eu, para o Salão Assyrio, para beber uma água, apenas para estar entre as paredes de mármore e os temas egípcios. Naquele restaurante, um dia, adulta, eu almoçaria com meu príncipe encantado, um sonho esquecido.
O Municipal era um portal para a beleza. Uma bolha em que a vida soava melhor. O ar empesteado de bons perfumes franceses. Pessoas amantes do teatro, músicas e voo de bailarinas pareciam especiais para mim.
Houve uma época, na adolescência, em que meu irmão ganhava ingressos gratuitos para o Municipal. Eu aproveitei todos. Uma apresentação linda do Tom Jobim, para o Banco Nacional, aconteceu ali, naqueles dias. Era noite de chuva forte, o maestro brincou: “tinha que ser o show do banco do guarda-chuva”, referindo-se ao símbolo da instituição. E desfilou as músicas amadas por mim, amparadas na voz aveludada de Danilo Caymmi e na harmonia do Quinteto Vocal. Inesquecível. Um dia, cruzando com Jobim no Leblon, num abraço de fã, confessei o encanto sentido. Ele não se forçou a lembrar daquele entre tantos shows feitos mas, sim, do local: “Ah, aquele teatro…”
Adulta, estive no Opéra de Paris para ver, encaixada em sua arquitetura belíssima, traços do nosso Municipal. Construído na época em que o centro carioca buscou espelhar a arquitetura e os boulevards parisienses, muito fora inspirado no teatro francês, lindíssimo, mas sem a alma que, por anos de relação, eu poderia emprestar-lhe.
É profundo meu afeto pelo Theatro. A memória afetiva da infância, o raro momento de ter minha mãe só para mim, o deslumbre dos espetáculos, a emoção da música, os mármores, estátuas, lustres daquele cenário de filme, o aroma e o luxo de uma só noite numa vida comum.
Hoje, a presença luxuosa no centro de uma cidade que existe de forma diferente. Reclamo se as cadeiras rangem. Esqueço tudo olhando o teto e os frisos dourados dos balcões. Já não sonho nem penso à frente quando estou lá. Acumulo espetáculos maravilhosos na memória. Aspiro lembranças do meu passado, agradecendo sua doçura. E aproveito cada momento possível de ser vivido ali.
É incrível estar num espetáculo* numa das salas do Theatro, nessa altura da vida. Ainda não sei voar, suave, como as bailarinas. Mas não haverá como não ver meu sorriso estampado no rosto.
( * Nota do Editor: Ana Lúcia integra o elenco de GINGERS (@grupodesapateadogingers) , um grupo formado por mulheres entre 53 a 89 anos que iniciaram na arte do sapateado na terceira e quarta idade, apresentarão nos dias 25 e 26/10 o espetáculo GINGERS – UMA OBRA DE ARTE DO TEMPO. As meninas já estiveram no Domingão com Huck e conseguiram a verba necessária para o espetáculo no Municipal através do quadro The Wall . Não perca esse espetáculo! Ingressos AQUI )
DICAS DA SEMANA:
Dois livros de autoras maravilhosas foram lançados nas últimas semanas.
O primeiro, “Boca de Luar”, de Regina Dias, pela Editora Inverso.
Uma série de poemas e anotações poéticas, reflexões com a delicadeza e a profundidade comovente da autora, que também escreveu “Paulistana”, outra publicação pela Inverso; este, de crônicas. O texto de Regina sempre me emociona e dialoga com meus silêncios.
Na definição de Verônica Miranda, para a página da Amazon, “Boca Lunar são histórias e reflexões da autora, sem ordem cronológica, em que ela tece o cotidiano por meio da sua memória musical, da sua experiência como editora de cinema e do seu olhar fotográfico diante de tudo o que lhe acontece, enfim, da sua poética pessoal. Textos curtos e haicais pontuam no livro seus amores, amizades, natureza, vida digital e familiar. Há também experiências de ordem formal na sua construção. Neste conjunto de textos, ela nos leva por de uma jornada nostálgica à uma época efervescente culturalmente, desde viagens de mochila nos anos 70, passando por momentos únicos de emoções agitadas na cidade, e de paz e contemplação no seu refúgio goiano. Boca Lunar está sob regência de alguém que, sempre escrevendo, observa seus próprios espasmos de alegrias e tristezas, da vida à flor da pele”.
O segundo livro é de Marlene Lima, escritora finalista do Prêmio Jabuti 2018. Pela Editora Cambucá, ela acaba de lançar “Pontas de Rama”. Na sinopse do livro, no sítio da Livraria da Travessa, assim consta: “uma obra reveladora e com clareza atordoante, que percorre histórias de mulheres expostas à violência, à hipocrisia e ao machismo desde o nascimento. A escritora nos concede a reflexão sobre as faltas herdadas e as esperas impostas. Também sobre as dores cotidianas, muitas vezes veladas e até mesmo rendadas numa trama persistente. Por fim, constata: uma ponta de rama não pode ser contida; em algum momento, há de sobressair”. Ainda aguardo, ansiosa, o livro de Marlene chegar, já encomendado pela internet. Amo seu estilo, seu ritmo narrativo próprio, um certo tom regional que ora o visita, a engenharia de seu texto.
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com César Manzolillo