Tessitura: a vida como um tecido vivo de relações

Tessitura. Ilustração: CoPilot Microsoft /Rapha Gomide

 

Tessitura: a vida como um tecido vivo de relações

 

“A gente não precisa responder

À dureza do mundo com violência.

A gente pode responder

À dureza do mundo com o movimento que a água faz”. 

(Ailton Krenak)

 

 

Jacques Derrida (1930-2004).  (Foto: Jacqueline Salmon/Artedia/Leemage)

O título deste artigo traz uma palavra muito significativa para o filósofo francês Jacques Derrida: tessitura – substantivo feminino que significa estrutura, composição, contextura. 

Derrida foi um dos maiores pensadores do século XX e a partir de suas vivências, suas leituras e suas teorias, deixou-nos a ‘janela aberta’ para pensarmos a alteridade de modo bastante cristalino: o outro é um indeterminado. É qualquer outro. É um incalculável. E neste aspecto, funda-se um conjunto de possibilidades de pensar o outro. Uma abertura assimétrica. 

Nos nossos dias temos a difícil tarefas de equilibrarmos papéis, desejos e relações interpessoais. A instabilidade é intrínseca ao sujeito. Somos atravessados a todo tempo por questões, afetos (bons e ruins) e desejos. Escutar a si e ao outro é ainda outra tarefa desafiadora, sobretudo em tempos acelerados de relações sociais que exigem sujeitos da performance cada vez mais (aparentemente) contidos, ‘bem-sucedidos’ e realizados em todos os sentidos. Uma profunda ilusão. 

Mas talvez aqui caiba conjugar o verbo desacelerar – que não é desistir, como muito se fala no senso comum do neoliberalismo. Ao contrário: é um convite a prestar atenção ao que realmente importa à cada um. Uma necessária pausa. Um olhar para si e um olhar ao redor. Um voltar-se para si, muito próximo ao que já falava Sócrates, lá no século IV a.C., a partir da busca pelo autoconhecimento e do fortalecimento de valores éticos. 

Eis aqui um dos maiores propósitos da Filosofia: o exercício (como prática) permanente de destituição das opiniões e das ilusões, e como consequência última – a felicidade. Uma afirmação que pode parecer bastante categórica. Mas desde a antiguidade clássica socrática até os dias atuais, nas mais diferentes culturas e povos, esta tem sido a principal intenção do exercício filosófico. E que nos serve de farol de direcionamento ético-político-moral quando nos encontramos dispersos e em aporia. 

Ailton Krenak (Foto ABL/Divulgação)

No nosso tempo testemunhamos um desmoronamento de valores e referenciais éticos e morais. Ou como nos diz o filósofo dos povos originários, Ailton Krenak, na sua obra A vida não é útil, “uma espécie de erosão da vida”. Estamos assim cada vez mais necessitados de uma espécie de candeias filosóficas, que nos sirvam de indicação de pensamento, que nos auxiliem no entendimento da complexidade de nossas relações. Para nos ajudar a entender e aceitar aquilo que não depende de nós. E como efeito, a possibilidade de vivermos dias mais serenos e tranquilos, consigo primeiramente e com os outros, num bem agir harmônico consigo e com os outros.

Nesta mesma obra, Krenak nos diz também que está “interessado é na caminhada que fazemos aqui, na busca de uma espécie de equilíbrio entre o nosso mover-se na Terra e a constante criação do mundo” (p. 69). É um chamamento a pensarmos nossa existência como parte de um todo, uma natureza que nos abriga e onde estamos imersos, cujo ponto de atenção fundamental é pensar que cada um de nós é parte constitutiva dessa vida e desse organismo vivo que tudo atravessa. O homem não é o centro desse conjunto de vida. É uma parte de. É um fio deste tecido cósmico que se junta a outros fios para a composição do tecido. Uma grande tessitura.

E aqui precisamos também destacar a analogia com o fio e o tecido: pensar que nossas relações, ações e reações estão integradas neste TECIDO. Está tudo interligado. E quando nos relacionamos, vamos tecendo (compondo) este tecido vivo da vida – com tudo o que há de complexo, de diferente e que ao mesmo tempo é parte desta estrutura. Neste sentido, para nos ajudar a pensarmos nesta pluralidade, Krenak, na sua obra Ideias para adiar o fim do mundo, afirma que 

“definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos, viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida”. (p. 33).

A fala do filósofo tem muita penetração para nosso pensamento. Ela ecoa em cada sentido, de cada palavra…E pensar sobretudo as diferenças convivendo como ‘constelações’, como composições, numa tessitura estruturada pela unicidade de cada um de seus componentes. De cada um de nós – que, pelo uso da razão e do autoconhecimento, deve (ou deveria) perceber os efeitos de nossas atitudes, escolhas, imperfeições e palavras. A proposta é que nos vejamos como parte deste tecido. Como tessitura. É uma mudança radical de perspectiva. E assim, uma readequação de atitude consigo e com o outro. 

Entendemos que as atribulações e perturbações permeiam a vida cotidiana desde os primórdios. Desde a época de Sócrates, passando pela de Derrida até Krenak. São características que acompanham nossa condição humana. E, pelo uso efetivo de nossa capacidade racional, do ‘conhece-te a ti mesmo’, do exercício filosófico e da abertura (verdadeira) para o outro inapreensível, podemos tentar uma forma de vivermos mais serenos, menos perturbados e mais conscientes de que estamos inextricavelmente integrados no tecido vivo da vida.

Por outro lado, vemos um fio condutor entre esses três filósofos – tão distantes temporalmente, mas ao mesmo tempo tão próximos de nossos temores cotidianos. E o que vemos de comum é que nos mostram que só temos o agora para podermos fazer alguma mudança de atitude, quer de pensamento, quer de discurso. O tempo é agora: para tecermos cuidadosamente nossas relações. E para o cuidado de si e do outro: qualquer outro. Indeterminado. No tecido vivo de relações que é a vida. 

E por fim, pensemos de outro modo: a vida é festa. A vida é celebração – de um todo harmônico, que existe em eterna transformação. A vida é incontida…E fazer parte deste tecido vivo é em si, e já por ser tanto em si, um grande contentamento. 

E para encerrar este artigo, para embalar nossa reflexão, ocorreu-me uma canção de Gonzaguinha muito conhecida e que fala desta alegria – aqui deixo um trecho – para cantarmos enquanto nosso ‘tear’ trama o fio do tecido vivo da vida:

“(…)

Viver e não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar, e cantar, e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz

Ah, meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor
E será!

Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita

(…)”

 

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • KRENAK, Ailton. Um rio um pássaro. Tradução Yoshihiro Odo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023.

 

 

Author

Me chamo Zalboeno Lins, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ e atualmente faço Mestrado em Filosofia Antiga pela UERJ. Também apresento palestras de temas de Filosofia num programa interno da Claro. E mais recentemente, também dou aulas para o CEFS - Centro de Estudos Filosóficos de Santos. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz!

2 comments

  • Bom dia Zal, amei o texto, Tessitura : a vida como como um tecido vivo de relações, nos leva a uma profunda reflexão, são esses filósofos que me fazem gostar mais de Filosofia, parabéns pelo bom gosto com seu trabalho e estudo, Deus te abençoe sempre, bjs.

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