CONTO DE QUINTA: Assassina

 

ASSASSINA

 

Adelaide nunca desejou se transformar numa assassina. Achava mesmo que não apresentava tal vocação. Afinal, era discreta e vestia-se com sobriedade. Tinha uma vozinha fina e pausada, um cabelo bem cortado tingido de ruivo desde os vinte e poucos, uma pele alva salpicada de sardas, além de gestos econômicos e displicentes, que não combinavam nada com um jeito criminoso de ser. Ademais, esses programas sensacionalistas da TV, repletos de sangue, de crime e de exploração explícita e despudorada da miséria humana, a horrorizavam. A que ponto chegamos… Virava a cara, cerrava os olhos e procurava sôfrega o controle remoto. Era moça refinada, colégio de freiras, instituto de educação, aulas de francês, de piano e de etiqueta. Tinha berço, enfim. Chegou virgem ao altar, não obstante as investidas do futuro esposo. A gente precisa se conhecer melhor, ver se há afinidade de fato. Tão pouco original o sacana. Ela até que tentou, mas sempre que estava prestes a consumar o pecado, a lembrança da madre superiora e do crucifixo da capela da escola a paralisavam. Nos momentos de maior confusão e embaraço, essas duas imagens se misturavam, e, no lugar do rosto de Jesus, era a face de irmã Carmela que aparecia. Nessas ocasiões, era como se ainda a ouvisse dizer “nosso corpo é templo do Espírito Santoˮ com sua voz anasalada e monótona e aquele indefectível sotaque italiano. E depois, para quem chegou aos 57 anos sem nunca ter matado sequer uma barata… Seria mesmo uma guinada. Mas aquilo que Dinah havia feito não devia ficar impune. Não podia simplesmente seguir adiante, virar a página com aquela adaga cravada no peito. (Sim, sabia ser dramática quando convinha.) Sua capacidade de perdoar era limitada, acabou descobrindo da pior forma possível. Precisava se reerguer, tal qual o títere deformado no chão, que se anima e resplandece quando aquele que o manipula mete a mão nos fios. Achava que a outra era amiga. Como pôde ter sido tão ingênua? Como se deixou enganar assim tão facilmente? Não dormia mais desde que descobriu toda a verdade. Passava as noites em claro, pensando em como resolver a questão. Virou motivo de piada. Era apontada na rua. Trancou-se no quarto, fechou as cortinas e apagou a luz. Sempre raciocinou melhor no escuro. A sabedoria das corujas era uma característica sua. Por isso é que se martirizava tanto. Aquela traição infame não estava no roteiro. Era cena que o diretor resolveu incluir na hora, em pleno set de gravação. Ela, porém, não sabia trabalhar no improviso, tudo em sua existência era milimetricamente calculado. Quase como se andasse por aí com uma fita métrica nas mãos conferindo tudo. Quem não a conhecia até estranhava aquela idiossincrasia toda. Depois do tal episódio com a mulherzinha traiçoeira e peçonhenta, envelheceu pelo menos dez anos. A pele enrugou, perdeu o viço. Olheiras indesejáveis e profundas passaram a tingir-lhe de preto a cara. Foi-se a vontade de viver; veio a vontade de matar. A ordinária pagaria com a própria vida tamanha ousadia. Teria de sofrer, não bastava que morresse. Era necessário que sentisse dor… Muita dor. Uma dor pelo menos duas vezes maior do que aquela que lhe causara. Arranjaria um jeito de medir isso também. Que arma usaria? Contaria com a ajuda de cúmplices? Melhor não, metade da graça iria embora se não estivesse no controle absoluto de todo o esquema. Inteligente e capaz, sempre resolveu tudo sozinha. Especialmente agora que o marido havia partido por causa daquela fulana. Evitava até dizer seu nome. O casamento parecia tão feliz. Sólido mesmo. Firme. Todavia, bastou Dinah acenar-lhe para que ele fosse. Acho que nem a própria pestilenta esperava tamanha facilidade. Como o gringo idiota que segue a cabrocha seminua e morena no carnaval, lá foi ele atrás dela, da indecente, da despudorada, da destruidora de lares. Trouxa! Imbecil! Burro! Não, não era possível esperar mais. Aquele sentimento a estava envenenando. A hora havia chegado. Sentia-se dona da situação. Dominava a técnica, o processo todo, e nada poderia dar errado…

Na sexta-feira da paixão de 2018, ano anterior à chegada da pandemia que assolou a Terra e fez mais de 36 milhões de vítimas ao redor do planeta, por volta das 19h25, Dinah saiu da igreja acompanhada de um senhor circunspecto e grisalho. Na porta do bar do Mané, do outro lado da rua, Adelaide, com uma pistola na mão, mirou Dinah e atirou. Quatro vezes. Os disparos atingiram o muro da paróquia de Santo Antônio de Pádua, o pé esquerdo de uma fiel chamada Maria Doralice de Oliveira, que também deixava a igreja naquela hora, a ponta do rabo de um vira-lata caramelo que vivia perambulando pelas cercanias da paróquia e o senhor circunspecto e grisalho que caminhava distraído ao lado de Dinah. Atingido no coração, Argemiro Santos Patrocínio morreu na mesma hora.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

One comment

  • Muito bom! O texto enxuto, fluido, instigante e a ironia trágica de sempre. Mais um grande momento dessa coluna. Parabéns!

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