“Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.”
(Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa)
Não lhes deixo nenhum legado. Não desejo a ninguém o peso de cuidar do que não é seu ou de se identificar com os meus desejos. Quero ir e, livre sendo, livre deixá-los. Para que almejar o controle de um tempo ou de uma vontade, quando não me pertençam mais? O que fui ou disse já estará inscrito no mundo. Podem escolher por mim o traje, a caixa, o horário. Tendo ido embora, nada preferirei. Mas combinemos assim: os objetos etéreos da minha existência ficarão esparramados na cama. Os abraços com que os envolvi amorosamente, as páginas escritas, os conselhos, a mania de ter esperança. Apanhem o que quiserem.
Minha partida será triste. Adoro a vida. Os cenários por onde caminho quando estou só. Os cheiros, as vozes das pessoas amadas. As coisas miúdas compondo quadros maiores: passarinhos na janela, ondas do mar, criança atrás da bola, olhos de cães quando recebem amor, as plantas na varanda. Os sons de futebol no playground, de freada de ônibus ao longe e de feira armando na madrugada. Mas reconhecerei a sorte de ter ido além. Dos momentos sem direção, cheguei a minha estrada em eterna construção. Dos sofrimentos, ao tempo de voltar a acreditar. Da solidão existencial, ao encontro dos meus pares.
Fiquem tranquilos. Sei muito sobre reinícios. Em paredes vazias, pendurei painéis. Sobre desertos, ergui meu lar. Substituí fracassos por sonhos novos. Colori, com palavras, muitas telas em branco. De minhas mortes, sempre renasci. Não haverá de ser diferente. Mesmo se o céu não existir, serei adubo ou planta. Terei vivido o suficiente aqui. Posso ter desperdiçado oportunidades, mas jamais deixei de amar. Nunca abandonei uma relação sem a certeza de tudo ter sido tentado. Sempre abri janelas para o sol entrar.
Tive uma vida comum, ora triste, ora divertida. Não sou célebre mas nunca fui medíocre. Respeitei as dores e festejei as alegrias. Fingi ser artista para dar de comer à alma burocrática. Paguei minhas dívidas. Aprendi a dizer não e o disse aos legados imputados, à obrigação de manter firmes os alicerces das ruínas herdadas. Pus sob luz as minhas vontades, abandonando as expectativas descabidas.
Por isso, repito: peguem, só, o que lhes servir. Ou deixem tudo aí. Nada disso é de vocês. Legado é algo deixado para trás. Nem sempre encaixa na vida do outro. Um jeito encontrado por cada um para sobreviver à selvageria dessa existência.
Peço, apenas: não se esqueçam de mim. Sua lembrança me tornará eterna. Ainda que a eternidade seja só uma ilusão.
DICA DA SEMANA:
A dica de hoje é, no próximo domingo, dia 18/8, assistir ao Domingão do Huck. O grupo de sapateado Gingers (Sapatos Ageless) vai participar do quadro “The Wall” no programa e, na sequência, dar uma canja de uma das coreografias do espetáculo que sonha montar.
O grupo é formado por mulheres entre 53 e 90 anos de idade que, em sua maioria, começaram a sapatear já na terceira idade. O projeto de adaptação da dança e de iniciação de adultos na arte do sapateado é da professora Rafaeli Mattos, coreógrafa do espetáculo “Gingers, Uma Obra de Arte do Tempo”, que será apresentado, ainda neste ano, no Rio de Janeiro.
Rafaeli Mattos é, também, colunista da editoria de Dança do ArteCult e está cursando Doutorado. Sua tese se debruça sobre o tema sapateado e envelhecimento.
Assistamos ao Domingão do Huck, conheçamos o trabalho inspirador de Rafaeli, o sonho que motivou as Gingers a se inscreverem no programa e torçamos juntos para conseguirem vencer o paredão.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Triste, real, belíssimo! Parabéns!