FOGOS DE ARTIFÍCIO
Era uma casa no subúrbio, e Maria acabava de preparar o jantar. Mexia as panelas e pensava que o início da reforma no telhado teria de esperar mais um pouco. Tomara que não chova forte, torcia. Naquele sábado de inverno brando, o clima no país era de tristeza e perplexidade. A eliminação do Brasil na Copa do Mundo era a responsável por essa depressão coletiva. A mulher ganhava a vida como diarista e tinha 66 anos. Aparentava mais. Vivia se queixando de dores pelo corpo e de problemas de saúde. Já não apresentava o mesmo vigor para as tarefas domésticas, mas não podia parar de trabalhar. Nunca soube o significado da expressão carteira assinada e morava sozinha, sem ter quem a sustentasse. Nas redondezas, alguns de seus filhos e netos. De vez em quando, eles se lembravam dela e a visitavam – Natal, aniversário, Dia das Mães, as datas obrigatórias. Ajudavam conforme podiam, eram quase tão necessitados quanto ela. Do ex-marido não queria nem ouvir falar. Tinha um ódio insuportável do único homem que conheceu durante toda a sua existência. Sentia-se aliviada desde que conseguiu se separar cinco anos atrás. A mágoa pelo velho Paulo não era compartilhada pelo resto da família. Ninguém jamais conseguiu compreender o motivo de tanto ressentimento.
Maria não era ligada em futebol, mas, em época de campeonato mundial, tornava-se torcedora entusiasmada. Naquele dia, decidiu assistir ao jogo sozinha. Ficava nervosa e se sentia melhor sem ninguém por perto. Era também uma ótima chance de usar o bem mais precioso que mantinha em casa, agora praticamente inútil desde que se cansou de ver novelas e programas de auditório: um aparelho de TV de segunda mão ganho de uma de suas patroas. Preparava-se para botar a comida no prato quando Marilene, sua filha mais velha, chegou abatida.
– Mas o que é isso, minha filha? Essa tristeza toda só por causa de um jogo de futebol? Onde é que nós estamos? Levanta essa cabeça, mulher!
– Pois é, ninguém esperava, né? – disse a moça, constrangida.
– Senta aí, come comigo, anda! Sei que você adora macarrão. Tá quentinho.
Apesar de chateada com a derrota do Brasil, Marilene tinha um motivo muito mais grave para estar amuada. Precisava conversar com a mãe, não sabia por onde começar. Suas mãos tremiam, ela suava. Ficou calada por alguns instantes antes de revelar o motivo da visita.
– Sabe o que é? É que… O pai acabou de morrer.
– Como é que é? O traste empacotou? Foi isso que você disse?
– Sim, foi agora, de repente. Coração… Depois do jogo.
Por um segundo, Marilene achou que os olhos da mãe apresentaram um brilho cintilante demais para alguém que acabara de receber uma notícia tão grave. Notou ainda um tom de contentamento em sua voz, desses que brotam na boca de alguém que descobre ser o ganhador de um prêmio gordo na loteria, por exemplo. É claro, estava a par do que ela sentia pelo ex-marido, mas alegrar-se com o falecimento dele era demais. Maria começou então a andar agitada pela exígua cozinha. Seus movimentos descompassados lembravam alguma exótica dança tribal. Talvez significassem apenas alegria. A reação da mãe desconcertou Marilene, e ela resolveu ir embora. Não saberia o que dizer à mulher saltitante e eufórica que via diante de si.
Novamente sozinha, Maria continuava a celebrar. Recordou-se dos fogos de artifício que havia comprado. Quando o Brasil ganhava uma partida, a vizinhança se punha à espera dos rojões e dos morteiros lançados no ar pela velha Maria. Dirigiu-se ao quintal e logo encontrou o que desejava. Em frente de casa, iniciou uma comemoração solitária e entusiasmada. Atraídos pelo barulho e pelo brilho, os vizinhos nada entendiam. Com a morte de Paulo, Maria tinha acabado de receber da vida um ansiado troféu. Seu contentamento era imenso. Sua Copa do Mundo estava ganha.
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Sensacional! Lembro de uma amiga cuja mãe lhe disse que a vida dela só começou de fato quando o marido morrera. Assim, sucedeu com Maria. Como julgar? Cada qual sabe de si e a vida é bem mais que a ironia de um belo texto. Parabéns! Mais uma vez, a arte imitando a vida. Ou será o contrário? Parabéns novamente, pelo Conto de Quinta, que espero, sempre, com prazer.
César, você precisar adaptar isso para um roteiro de um curta-metragem! Muito bom!! Parabéns
Parabén, César! Sempre brilhante na arte de contar!