UM DIA DE VERÃO
Eunice saiu da rede e se instalou na cadeira de palha da varanda. Cruzou as pernas e substituiu os óculos de leitura por outros com lentes escuras. Pôs de lado o livro sobre questões ligadas aos direitos das pessoas com deficiência que vinha lendo nos últimos dias e contemplou o panorama à sua frente. Sorveu dois goles de suco de limão gelado, pousando em seguida o copo sobre a mesinha de centro. Retocou o batom discreto com o auxílio de um espelhinho. Procurou uma posição confortável e começou a meditar. Aos 67 anos, ainda trabalhava como advogada. Quando ingressou na faculdade, quase meio século atrás, julgava ser aquele o caminho ideal para alguém dotado de um senso de justiça tão exacerbado quanto o seu. O exercício profissional bem cedo se encarregou de demonstrar a falácia desse raciocínio. Ao longo da carreira, foram muitas as decepções. A sensação de impotência e de inutilidade era por vezes tão palpável… Atualmente, gostava de escapar da agitação da cidade fugindo rumo ao sítio da serra. No jardim, sua neta de 5 anos, companheira eventual dessas aventuras bucólicas, brincava. Em sua pureza infantil, mexia na terra, rolava na grama viçosa, colhia flores e observava o comportamento dos insetos. A avó estreante se comovia. Em cima do muro de tijolos ao lado do portão de entrada, a menina abria os braços com convicção e gritava: Eu sou o Cristo Redentor! De tempos em tempos, olhava para trás e acenava. E sorria. O sol forte do início da tarde iluminava-lhe o rosto. Como é lindo o sorriso de uma criança. De qualquer criança. Depois que ficou viúva, Eunice passou a não ver graça no apartamento amplo de Copacabana, onde hoje vivia sozinha. Tudo muito repentino, exatamente como costumam ser as tragédias. Uma bala disparada à luz do dia, não se sabe por quem, conseguiu, com a rapidez de um instante, pôr fim à vida de um homem produtivo, competente, amoroso e responsável. Olhando Camila, Eunice se preocupava. Que mundo lhe estaria destinado? Por um momento, desejou ter o poder de congelar o tempo. Ficaria ali, eternamente a olhar a menina, desligada do resto do Universo, convencida de conseguir assim resguardar e proteger aquele ser inocente. De quê? Nem ela mesma sabia ao certo. Em diversas ocasiões, a própria Eunice se sentia abandonada e perdida, carente de um ombro aconchegante. Um beija-flor inesperado e arisco distraiu-a por alguns segundos. Em seu voo assimétrico, a ave negra e minúscula quase se chocou com uma das pilastras da varanda. As duas garrafinhas penduradas no alto representavam um convite a esses pássaros adoráveis. Solitários, em duplas, lá vinham eles. Parados no ar, batiam as asas com avidez, sugando o néctar a eles destinado. Camila circulava agora entre as estatuetas que enfeitavam o jardim, transformando-as, com sua imaginação prodigiosa, em príncipes, heróis, fadas, duendes, seres alados, bichos falantes…
De repente, o tempo começou a se fechar. O sol, até então radioso, de vez em quando sumia por trás de nuvens espessas e acinzentadas, formadas sem que Eunice tivesse se dado conta. Um ambiente opaco surgiu. Um vento assobiando fino começou a ser ouvido. Balançava as folhas das árvores, levantava a poeira da estradinha de terra batida diante da casa e desalinhava os cabelos castanhos de Camila. Arrancava dos galhos mangas maduras que salpicavam o solo com um amarelo vivo e gostoso. A ameaça de chuva e as insistentes lufadas de vento fizeram Eunice convocar a neta até a varanda. Ficaram as duas ali, quietas e pensativas, concentradas apenas naquela realidade. De mãos dadas, exercitavam uma cumplicidade que deveria ser natural entre avós e netas. Meia hora depois, com a volta da claridade e de uma tranquilidade aparente, a pequena dirigiu-se de novo ao jardim. Perto de uma roseira ramosa, um marimbondo picou sua testa. Camila gritou de dor. E chorou.
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Parabéns pelo conto, César!
Que conto maravilhoso, César, atual é verossímil.
Belo texto, como sempre. Parabéns!
Que lindo, César! Construído sobre os contrastes. A leveza e a alegria da criança associada ao desencantou à angústia da avó; a tempestade que chega e se afasta o sol radiante o amarelo das mangas, que salpicada o chão. Entre flores, o golpe da dor. É triste e é bonito, delicado mas com espírito brutal. rs Gostei bastante!
Me sinto como se tivesse participando de tudo. Parabéns, gosto muito do que você escreve.