“A Sociedade da Neve” me foi recomendado por vários amigos de bom gosto. Adiei a sessão, imaginando as emoções possíveis numa trama tão emotiva.
A história é conhecida por mim há tempos. Era neném quando o avião uruguaio caiu nos Andes. Os desdobramentos do episódio foram tão marcantes que, já maior, durante a infância, várias vezes ouvi contar a saga dos sobreviventes do acidente nas conversas de família. Tudo que se viram obrigados a fazer para manterem-se vivos.
O filme é excelente. Concorre ao Oscar e é digno da premiação. Um elenco muito bom, dedicado à atuação e ao trabalho corporal (alguns atores definham, como os personagens, no avançar da história). Um roteiro muito bem costurado, inteligente na escolha do narrador, respeitoso com a história real, dramático como a narrativa pede, sem ser apelativo. A abordagem do canibalismo, por exemplo, perde um pouco a aridez por ter o foco no dilema moral e psicológico dos jovens diante de uma decisão de vida ou morte, sem recorrer a misticismos ou exploração visual dos gestos canibais. A direção perfeita, sabendo dosar emoções, entre o desespero, a alegria e a anestesia. O filme tem diálogos marcantes e silêncios retóricos. Prende a atenção do início ao fim. É emocionante durante todo o percurso e, ainda assim, o final consegue subir mais um degrau e ser muito comovente.
É, antes de tudo, sobre o milagre da sobrevivência numa situação absurda e hostil. Um milagre nascido na união e na perseverança da sociedade formada, na fé devotada tanto ao homem quanto ao divino. Uma fé que faz a esperança sempre insistir, mesmo quando falta sentido e sobra dor.
Também é sobre resiliência. Mostra-nos como sermos o que somos e pensarmos o que pensamos é um luxo, por vivermos num ambiente, num tempo e num meio que nos permite assim nos expressarmos. Invertido o mundo conhecido por nós, de forma drástica, os valores julgados inabaláveis podem ceder. Mesmo provocando culpa ou dúvida no início, cedem tão rotineiramente até substituírem os anteriores. Se não conseguimos imaginar uma situação tão específica como a do filme, pensemos em adversidades como as guerras, por exemplo, a nos exigirem a compreensão de razões, necessidades e realidades desconhecidas, mantendo a vida como o bem maior.
Sobre amizade, vínculos e união, o filme fala de interdependência. Evidencia a necessidade de dar-se as mãos, dividir o trabalho, gerir potências, apoiar-se uns aos outros, para sobreviver-se. Mesmo os que se acham “inúteis”, por alguma limitação, somam experiência, inteligência, são referência de afeto ou exemplo ao grupo. Aqueles rapazes tão jovens, a maioria nos seus 20 e poucos anos, nos ensinam uma lição esquecida frequentemente: a força de um grupo está na aceitação das diferenças. Conviver é aceitar a liberdade de ser do outro. E focar no melhor para o grupo. Admitir, mesmo com tristeza, sua opinião ser vencida eventualmente, sem quebrar o compromisso com o propósito maior. E ter novas oportunidades para trazer novas ideias. Quando aprenderemos também?
O filme é triste. Mas o saldo final é de muita beleza.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo