ESTRADA REAL – PARTE 2: desbravando os sabores do CAMINHO NOVO

 

Como vimos no artigo anterior, parti para minhas férias em uma jornada épica pela ESTRADA REAL, na busca dos autênticos sabores mineiros. Fiz uma detalhada pesquisa em diversos sites da internet, fiz todo o planejamento, me cadastrei no site oficial  https://institutoestradareal.com.br/ , baixei o aplicativo para celular, a planilha contendo os pontos de retirada de passaportes e  pontos de carimbo e, por e-mail, recebi o número identificador dos meus passaportes virtual e físico. Além disso, fiz toda uma “lista de desejos”, levando-se em conta o trajeto que defini previamente.

Nessa primeira etapa da viagem, sairia daqui de casa em direção a Ouro Preto, cruzando o denominado CAMINHO NOVO.

“O Caminho Novo é o mais jovem da Estrada Real. Sua criação começou a ser definida em 1698, mas foi entre 1722 e 1725 que a rota estava finalmente definida. Repleto de atrativos turísticos, ele guarda dezenas de vestígios da época mineradora, um verdadeiro convite para o viajante. Aberto para ser alternativa mais rápida e fácil ao Caminho Velho, o Caminho Novo guarda para os turistas uma série de elementos da época das bandeiras e das primeiras explorações do território. São túneis, chafarizes e fazendas, hoje transformadas em confortáveis meios de hospedagem, que resgatam construções e costumes dos séculos 18 e 19 (…) Dos 515 quilômetros, 32% estão asfaltados (166 km), e 5% são trilhas (25 km). Os outros 63% são de estrada de terra (324 km)”  

Foto da capa do App da Estrada Real

Na WIKIPEDIA encontramos:

“A autorização para a abertura de um novo caminho foi passada por Carta-Régia em 1699 endereçada ao governador da capitania do Rio de Janeiro, Artur de Sá Menezes.

A abertura da nova via ficou a cargo do bandeirante Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias, que tinha participado da bandeira de 1674-1681. À época da contratação, Garcia Rodrigues Paes estava estabelecido como sesmeiro, com duas roças na região: uma às margens do rio Paraibuna, e outra, na Borda do Campo (atual Barbacena).

O sertanista conseguiu concluir a picada para pedestres em 1700 após uma série de dificuldades. A partir de então continuou a aprimorá-la para o trânsito de animais de carga visando explorar o privilégio de cobrança de pedágios. A via foi concluída em 1707.

Nesta época, o Caminho Novo era percorrido em cerca de um mês, um terço do despendido no Caminho Velho.”

O  ponto considerado como início do caminho é Porto Estrela, mas ele já não existe mais, sendo possível apenas vislumbrar ruínas. Ademais, o trecho não é seguro e nem é considerado como ponto de carimbo físico, apenas virtual. Magé, município da Baixada Fluminense, situado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que também é um ponto de carimbo físico (e virtual) considerado, mas não para retirada do passaporte, resolvi passar direto e pegar o carimbo em outra oportunidade.

Mas gostaria de deixar uma dica gastronômica – já que esse é o intuito do artigo – do município Magé, conhecido pela 1ª Estrada de Ferro do Brasil, construída em 1854 por Irineu Evangelista de Souza, o Barão e depois Visconde de Mauá. Conheci o República Sushi Louge (@republicasushilouge), que fica num cantinho escondido em uma praça recém reformada, em que você se sente como se estivesse em outro lugar. Ambiente agradável, atendimento primoroso. Vale a visita…

Então, temos Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, como primeiro ponto para retirada do passaporte e, como esse é um artigo com foco em gastronomia, vale lembrar que a Bohemia, primeira cervejaria do Brasil, criada em 1853, se encontra em Petrópolis. Então, tá valendo a menção…

Saímos de Petrópolis e, depois de pegar o carimbo de Secretário (um bairro do distrito de Pedro do Rio/Petrópolis), fomos até Inconfidência (Sebollas), que é um distrito de Paraíba do Sul. Lá pegamos o carimbo no Museu Sacro-Histórico de Tiradentes, onde estão expostos objetos que teriam pertencido a Joaquim José da Silva Xavier, bem como ossos que são atribuídos a ele. Há, também, uma igreja da Paróquia de Sant´Anna, cuja construção foi concluída em 1771. O local é muito legal… Mas ainda estava cedo pra começar minhas brincadeiras gastronômicas…

Dali, tínhamos duas opções. Ou seguíamos em direção à Paraíba do Sul ou, como indicou um morador, pegaríamos uma outra via, também de estrada de terra, porém mais curta, e logo estaríamos no asfalto. Como o carimbo em Inconfidência já era de Paraíba do Sul, optei pela segunda rota. E foi esse o único trecho de estrada de terra que peguei no Caminho Novo… Ou seja: se você não tem uma 4X4, dá pra fazer assim mesmo, não tem mais desculpa.

A próxima parada foi no município de Matias Barbosa, já no Estado de Minas Gerais. E, como contei no artigo anterior, era hora de almoço e, por sorte, na parada do carimbo tinha um self-service bem representativo da culinária mineira. E aí, montei meu “pratinho” com um pouquinho de cada delícia: feijão tropeiro, tutu a mineira, angu, couve refogada, torresmo, bolinho de arroz, linguicinha, frango com quiabo.

Passamos por Juiz de Fora e, a seguir, por Santos Dumont e, ali, fui atrás do primeiro item da minha lista: o Queijo Palmyra, produzido desde 1888 pela Companhia de Laticínios da Mantiqueira, a primeira fábrica de laticínios do Brasil e da América do Sul.

“O Queijo Reino é com certeza o primeiro produto lácteo brasileiro que se confunde com os primórdios da industrialização profissional de laticínios do país. A cronologia da produção de leite no Brasil é bastante simples e se inicia praticamente no inicio da colonização, após o descobrimento e se intensifica no ciclo da mineração os quais há registros da introdução do queijo “mineiro”, uma adaptação dos queijos produzidos na região da Serra da Estrela, Portugal. O queijo de Minas consolida-se aos passos e caminhos da estrada real, percurso que ligava os portos do Rio de Janeiro às terras ricas das minas gerais, a partir da descoberta das minas de ouro.

Na segunda metade do século XIX, o gado Holandês é introduzido na raiz da serra da Mantiqueira, atual região que engloba municípios como Antônio Carlos, Barbacena, Santos Dumont, Bias Fortes, utilizando o vocabulário atual, pelo empreendedor português, Carlos Pereira de Sá Fortes.

O Queijo do Reino surge originário do holandês Edam introduzido pelo mestre queijeiro Alberto Boeke, um holandês que vislumbrou a região da Mantiqueira como uma região propicia para produção de queijos.  Boecke associou-se a Sá Fortes resultando em 1888, na primeira fábrica de laticínios do Brasil, a Companhia de Laticínios da Mantiqueira, com equipamentos importados da Holanda e introduzidos pelos ilustríssimos mestres queijeiros Gaspar Jong, João Kingma, os quais ficam raízes definitivas no Brasil. A origem da expressão “do Reino” era corriqueira e atribuída aos produtos oriundos de Portugal, via de importação de grande parte do que se consumia no país.

O tradicional processo de embalagens em latas de folhas de flandres atribui-se ao fato de que os queijos viriam para o Brasil em porões de navios e, portanto, a embalagem na lata os protegeria durante o longo percurso de travessia do Atlântico. A estrutura de produção foi conservada, valorizando ainda mais sua venda aqui no brasil.” Fonte: http://www.queijosnobrasil.com.br

Tradicionalmente feito com soro fermentado e com longos períodos de maturação, é um queijo com coloração intensa, massa firme, com textura fechada e sabor intenso e simplesmente único. Vale demais experimentar!!!

Depois dali, pegamos o carimbo em Barbacena e, após de passar por Ressaquinha, resolvemos pernoitar em Carandaí. Infelizmente, não consegui o carimbo físico dessa cidade, já que o local estava fechado e, no dia seguinte, abriria mais tarde, mas fiz o check-in virtual. Dali partimos para Conselheiro Lafaiete e Ouro Branco.

Quando chegamos para carimbar o passaporte em Ouro Branco, resolvemos fazer uma pausa. Encontramos o Confessionário Bar (@confessionariobaroficial), com uma linda vista e um ótimo atendimento. Resolvi experimentar uma cerveja de Ouro Preto, a Ouropretana (@cervejariaouropretana), e o tradicional Pastel de Angu, que surgiu no século XIX, na zona rural de Itabirito. De acordo com o historiador Carlos do Carmo, “conta uma história que por volta de 1851, na Fazenda dos Portões, as escravas Maria Conga e Filó, produziam um pastel usando restos de carne, sobras, elas faziam esse pastel. O principal alimento dos escravos era a base do milho, era o fubá. As escravas então trabalhavam na casa grande e a senhora dona da casa grande, ela vai incorporar essa receita e vai passando essas receitas para as gerações futuras dela até chegar nos nossos dias”.

Seguimos viagem e pegamos carimbos em Itatiaia e Lavras Novas. Este último me lembrou muito locais turísticos, desses que ficam bastante apinhados de gente. E como estamos em Minas, não poderia deixar de trazer aqui um clássico conhecido mundialmente, o pão de queijo. Iguaria de origem incerta, havendo relatos dizendo que a receita foi criada no século XVIII, quando as cozinheiras das fazendas utilizavam  a farinha da mandioca, mais tarde conhecida como polvilho, no lugar da farinha de trigo na suas receitas de pães, já que essa última, trazida pelos portugueses,  era de baixa qualidade e imprópria para consumo. Outro relato dá conta de que a receita surgiu no período da escravidão, a partir da junção dos ovos e do leite com a mandioca. Porém, a popularização do pão de queijo só se deu após o ano de 1950.

“O pão de queijo, assim denominado, surgiu em Minas Gerais por volta do ano de 1750. Nesta época a agropecuária do estado começou a se especializar na produção de leite e de seus derivados. Por sua distância geográfica da costa, o estado de Minas Gerais consumia pouca farinha, que era importada, mas tinha ampla produção de mandioca, raiz nativa do continente e matéria-prima do polvilho. Os primeiros pães de queijo eram obtidos misturando-se aparas endurecidas (ou a “grosa”) das rodelas de queijo com o polvilho. Ovos e leite, itens também abundantes na região, foram posteriormente acrescentados para incrementar textura e sabor.” (Wikipedia)

Enfim, chegamos a Ouro Preto.  E aqui começam umas brincadeiras interessantes…

Primeiro de tudo, resolvi tomar um chopp artesanal – e o fiz quando encontrei, pelo caminho, um fusca preto prá lá de especial. Pedi a Ourobier de 500ml, que foi tirada bem geladinha…

E aí, logo ao lado, havia um pequeno empório de cachaças chamado Sobiuai (@cachacaria_sobiuai), com uma variedade bem grande, que até ficou difícil escolher.

Ainda falando sobre bebidas, ao visitar o museu Casa de Aleijadinho, ao final do tour, fui apresentado à cachaça Safra Barroca (@casaaleijadinho), que possui uma história peculiar, segundo nos informaram. A cachaça é obtida da cana Java, produzida em dornas de uma madeira doce e aveludada vinda de Portugal, porém, de origem sul-africana, que foi descoberta em uma fazenda de 250 anos e é responsável por torná-la doce, quase um licor, sem adição de açúcar. Eles a chamam de “ouro líquido”. Eu provei e, realmente, é algo diferenciado. Se é verdadeira a história das dornas e do dulçor ser por conta da tal madeira africana, aí eu não posso afirmar. Mas fato é que é uma delícia de cachaça…

Hora do almoço. E hora de caçar, pela cidade, os pratos emblemáticos das Minas Gerais. Achamos um restaurante em um casarão histórico, o Contos de Réis (@contosdereis). Lógico que, pra abrir os trabalhos, nada melhor do que (mais) uma cachacinha, acompanhado de um torresminho… Aliás, vale lembrar que o torresmo é uma contribuição da culinária portuguesa, com influência dos temperos trazidos pelos escravos africanos. Segundo registros historiográficos, o torresmo nasceu na Bahia colonial, quando os escravos africanos passaram a fritar a pele do porco que sobrava após a retirada da banha, usada na cozinha pelos portugueses. Algum tempo depois,  migrou para a tradição gastronômica de Minas Gerais, sendo praticamente extinto das mesas de seu Estado de origem.

Iniciando com um clássico: o frango com quiabo. Sua origem, incerta, remete provavelmente ao século XIX, época em que Minas Gerais passava por grandes dificuldades no transporte de outros alimentos, vindos dos grandes centros da época – Bahia e Rio de Janeiro. Assim, como a galinha caipira e o quiabo eram facilmente encontrados em terras mineiras, sua utilização passou a ser comum, resultando num prato que tornou-se um símbolo e é encontrado, praticamente, em todos os cantos de Minas.

Vamos pra mais um clássico: tutu a mineira. A origem desse prato se liga ao século XVII, quando da descoberta do ouro em Minas e pela imensa migração de gente, onde havia escassez de comida, agravada pela natural dificuldade de transporte, já que os alimentos sempre vinham de longe, carregados pelos tropeiros. A comida tinha que ser seca, para não azedar nos lombos das tropas. Hoje, o bom tutu a mineira é servido com arroz branco, carne de porco, torresmo, couve refogada, angu, linguiça e enfeitado com um ovo frito…

Pausa pra uma cervejinha, porque ninguém é de ferro…

Como o próximo prato – frango ao molho pardo – não estava na minha lista, embora seja patrimônio mineiro, tomei a liberdade de fotografá-lo da mesa vizinha. O casal, simpático, não se importou e ainda deixou que eu fizesse o “empratamento”.

Esse prato chegou em Minas no século XVIII, no início do Ciclo do Ouro, mas não da mesma forma que o tradicional frango à Cabidela português, mas com uma identidade própria. Do sangue do frango é feito um molho denso, misturado com o vinagre, para não coagular, e acrescido de especiarias vindas da África e de tempero mineiro. Na versão portuguesa, eram utilizados os miúdos retirados das extremidades do frango, enquanto que, na versão mineira, utiliza-se todos os pedaços. É um prato que nos remete à história das grandes fazendas da região…

Do restaurante, que possui um pequeno empório anexo, resolvemos levar algo que também é símbolo da cultura de Minas Gerais, já que a tradição de produzir doce de leite alude ao século XVIII, com a chegada dos colonizadores portugueses e a introdução da pecuária na região. Afinal, a grande riqueza dos pastos mineiros e a generosa oferta de leite de qualidade favoreceram – e muito – o desenvolvimento da produção de doce de leite da região, não à toa um dos melhores do país.

Em Ouro Preto, chegamos ao fim do no percurso pelo CAMINHO NOVO da ESTRADA REAL. Era hora de aproveitar um pouco, descansar e se aprontar para o caminho de volta. Sabia que, nesse, teria que, forçosamente, pegar mais estrada de chão e é sempre uma apreensão andar por caminhos que não se conhece e ficar, eventualmente, sem sinal de celular ou GPS. Mas quem tá na chuva é pra se molhar, certo? A recompensa vale a pena…

Espero que esse artigo tenha trazido um pouco mais de luz sobre a maior rota turística do Brasil e que, de quebra, tenha também despertado a curiosidade em conhecer. Eu garanto que é um passeio imperdível?

Me diz aí, que tá curioso pra saber o que tem pelo CAMINHO VELHO? Tem muita coisa boa pelo caminho – principalmente, porque ele vai passar pela cidade onde vivi toda a minha infância. E aqui, abro um parênteses pra contar que, em breve, estarei levando um grupo para fazer a ROTA DO QUEIJO DE ITANHANDU. Nesse projeto piloto, visitaremos: QUEIJARIA SANTO ANTÔNIO (@queijaria_santo_antonio) , POUSADA SERRA QUE CHORA (@serraquechorapousada), QUEIJARIA CINQUENTA (@queijaria50), QUEIJOS ALMEIDA GUIMARÃES (@queijosalmeidaguimaraes), QUEIJOS DI CAPRE (@queijosdicapre), ECILA (@ecilalaticinios) e QUEIJOS DE BÚFALA PÉROLA DA SERRA (@peroladaserrabufala).

É só esperar um pouquinho que já já a parte 3 vai contar tudo…

Aguardo todos vocês!

 

DEL SCHIMMELPFENG

@del.schimmelpfeng

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Del Schimmelpfeng é Analista Judiciário do TJERJ, mas desde que se lembra - e coloca tempo nisso! - ama cozinhar! Apesar de ter feito as faculdades de arquitetura e direito, é se misturando aos pratos, panelas e temperos que se sente inteiro, completo, pleno. É autodidata, nunca fez curso de culinária, tampouco se imaginou um profissional da área. Considera-se apenas um curioso, que procura o conhecimento em tudo e que tenta, de todo jeito, viver da melhor forma possível - apesar de todas as dificuldades. Afinal, não haveria graça se elas não existissem... Participou da seletiva da segunda edição do Masterchef e da décima nona edição do reality "Jogo de Panelas", apresentado por Ana Maria Braga no programa "Mais Você" da Rede Globo, na qual sagrou-se campeão. Possui, ainda, textos publicados em livros de conto e poesia. Blog: http://delschimmelpfeng.blogspot.com Instagram: @del.schimmelpfeng

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