Não costumo ser devota de santos. Gosto das histórias, da simbologia. Mas, recentemente, me lembrei de minha história com São Longuinho.
Trabalhava no tribunal, numa vara com um grande acervo de processos físicos. De vez em quando, alguém guardava algum fora de ordem ou na gaveta errada. Se um advogado chegasse procurando aquele processo, tínhamos muito trabalho para encontrá-lo. Às vezes, só conseguíamos depois do horário do expediente, revirando o setor.
Não achar um processo é angustiante. Você se sente mal diante de quem o procura, compromete a imagem de eficiência da unidade. Ninguém quer passar por isso. Por isso, uma das colegas recebeu de presente do marido uma imagem de São Longuinho. Se um processo “sumisse”, o número era posto sob os pés da imagem. E não é que dava certo?
Começou com a incredulidade de alguns colegas. Continuou com a aposta geral de que chamar o santo para participar da procura daria certo. No fim, alguém sempre estava pagando, com três pulinhos, a ajuda recebida. No meio do cartório, na frente do advogado. Talvez divertíssemos o santo no ridículo de pular. Não importava. Pedido atendido, reverência necessária.
“São Longuinho, São Longuinho, se me ajudar a achar (objeto perdido), dou três pulinhos!”
Ganhei de presente uma imagem do santo, quando deixei o setor. No novo local de trabalho, quase integralmente digital, o santo não foi tão necessário. Trouxe a imagem para morar na minha casa.
Lembrei-me disso diante da crônica divertida de uma amiga, em que citava o suposto paradoxo de invocarmos um homem meio cego e torturador. A estranheza se dilui nos elementos simbólicos de sua história. O homem, com um problema grave de visão, praticamente cego, enfiou a lança no corpo de Jesus na cruz. Respingaram sangue e água em seus olhos. Curou-se, converteu-se ao cristianismo, e, como outros mártires, foi morto. O algoz se dobrou diante do milagre; o opressor aprendeu com sua vítima. Não é preciso acreditar em milagres para amar a simbologia de sua história: os olhos carnais, adoecidos, se abriram para a Verdade, para a fé.
Seu nome, Longuinho, vem da lança: em latim, “longinus”. Dizem que, por ser baixinho, enxergaria os objetos mais próximos. Daí a crença de que os encontra.
Sua imagem popular é um jesuíta carregando um lampião aceso. No Vaticano, o vi representado em mármore: homem musculoso, peito nu, uma lança na mão. Mártir e escultura de Bernini, não seria diferente.
Mas, no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, encontrei a imagem definitiva: um centurião romano, segurando uma lança na lateral do corpo, um discreto elemento do altar principal. Cara de homem comum, burocrata, que não sabe estar prestes a receber um milagre. Gente que falha para chegar à clareza do entendimento. Errante diante da vida, cujo sentido se revela aos poucos, talvez tarde. Como nós.
Fotografei São Longuinho no altar do santuário. Tanto tempo depois de nos relacionarmos, pela primeira vez, o enxerguei.