
“Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária.”
Machado de Assis (1839-1909), escritor realista brasileiro – no conto “Um apólogo”
Dando um fecho tupiniquim às narrativas mitológicas helênicas, que tanto nos agradam, vemos, de modo mais direto, algumas das lições que podemos tirar ao analisarmos a quadra histórica em que vive o povo brasileiro. É de suma importância que não nos omitamos, que sintamos e que ajamos, pelo bem de nosso país e de nosso povo.
A sabedoria pré-filosófica clássica pode nos ajudar a entender, ao menos parcialmente, o que se passa no mundo e no Brasil de hoje. Procurei, ao longo das três partes anteriores deste artigo, estabelecer ligações entre as histórias narradas com o processo político em curso por aqui, neste país infelicitado pelo obscurantismo reacionário, desde 2016 e, com mais força, desde 2018. Minha intenção foi a de, tal como na brincadeira de criança, ligar, com o lápis da mitologia grega antiga, alguns pontos para formar uma, de várias figuras sociais e políticas possíveis, que compõem ao menos parcelas deste mosaico caótico, cruel e surrealista em que transformamos o Brasil.
O título deste artigo, repetido em suas quatro partes, exprime algumas transformações que presenciamos no Brasil, nos últimos anos. Bolsonaro apresentou-se como o aventureiro Jasão, viajando pelos mares revoltos do que chamou, cinicamente, de velha política, como se dela não fosse um subproduto (descartável) do que há de pior nela. Esse Jasão tupiniquim prometeu para sua Medéia, aqui representada pelo povo brasileiro, um país melhor e, não obstante falou muito do que iria fazer, traiu a mulher (deve ter sido em um daqueles apartamentos funcionais em que ele disse que pagava com dinheiro público para, nas próprias palavras, “comer gente” e com que enganava, no mais das vezes, o ingênuo, ludibriado e beócio, povo brasileiro), enganando-a que não era corrupto, dentre outras promessas não cumpridas, como dizer que ia administrar o país para o bem geral e não apenas para dar vazão à sua guerrinha cultural tosca, autoritária, corrupta e assassina. Vamos ver quando, e não se, essa Medéia irá “trair” o voluntarioso Jasão nacional (uma parte, felizmente, já começou a fazer isso) o que, na prática, na verdade, significa a redenção nacional.
As reflexões provocadas por essas (e outras) histórias da antiguidade ainda guiam nossos sentimentos e comportamentos e deveriam nos servir de base para a renovação que tanto necessitamos, como mudar, radicalmente, a total falta de empatia pela vida alheia, expressa pela indiferença, por exemplo, com mais de 700 mil mortos na pandemia, só no Brasil, e com mais de 8 milhões de mortos pelo mundo.
Como o Rei Midas, Jair “Jasão” Bolsonaro achou que tudo o que tocava era ouro, embora soubesse (ou deveria saber), no fundo que sua política era genocida pela inação na saúde pública e que sua política de destruição ambiental, da educação, da credibilidade nacional perante o mundo etc. era deliberada e não fruto, apenas, de incompetência, embora também tenha sido. Esse Jair “Jasão” Bolsonaro, como Midas, transforma tudo o que toca; na verdade, vira pó (hummm…); (quase) tudo foi aniquilado. Assim, Jair “Jasão” Bolsonaro, transformou-se em Jair “Narciso” Bolsonaro, ao apaixonar-se, inicialmente, por sua “mãe”, que o pariu simbolicamente, a Lava Jato, e, com ela tendo se casado, nomeou o já expelido juiz ilegalista Sérgio Moro e se vendeu como restaurador da ordem universal no país, crente que seria um Zeus, opa, um Messias.
A Jocasta brasileira, a Lava Jato (a qual, diga-se de passagem, e admita-se, foi, a despeito de acertos, um bem sucedido golpe autoritário para minar o Estado de Direito por dentro, contribuindo para esfacelar nossas instituições democráticas, embora, felizmente, muitos brasileiros tenham acordando para o fato), percebeu-se, também ela, traída e, desesperada, viu, na verdade, o Jasão Castrense transformar-se, como dito há pouco, em um Narciso de quinta categoria, assumindo sua paixão auto-referenciada. Uma paixão que não vem da Harmonia (equilíbrio entre extremos), simbolicamente, filha de Afrodite (ou Vênus), deusa do amor, e Ares (ou Marte), deus da guerra, embora tenha com este deus da guerra, no tocante à paixão pela morte (alheia), forte laço “parental”, mas de um céu sem estrelas, tal como em um desastre de proporções épicas.
Esse Narciso redivivo tentou, agora e a todo custo (nosso), se agarrar ao Rei Pélias, aqui representado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que teve nas mãos o Velocino de Ouro da proteção jurídica (com Supremo e com tudo, não é? Lembram-se! Não obstante venha havendo tentativas de redenção na Suprema Corte e a condenação da quadrilha golpista vai nesta linha). Também tentou se agarrar à Câmara Federal e ao Senado, que em troca de moedas de ouro (verbas públicas, cargos, perdão de dívidas de banqueiros e latifundiários grileiros, títulos da dívida pública, cujo pagamento é garantido por lei, como mostra o orçamento secreto, ou seja, ilegal, corrupção pura com o dinheiro público, a maior corrupção já vista neste país, fim do sistema previdenciário, quebra da espinha dorsal do serviço público etc.), se propuseram a proteger Jair “Narciso – Midas” Bolsonaro contra os recordistas 145 pedidos de impedimento, que o Presidente da Câmara dos Deputados, deliberamente “ignorou”, em nome sabe lá do que (na verdade, sabemos sim, não é?), em face dos muitos crimes já realizados, por Bolsonaro, como Presidente da República, ofereceram-lhe o Velocino do legislativo e de parte do judiciário, enquanto dele precisou para executar seu projeto de anti-nação não-democrática/ditatorial e injusta, com métodos castradores de dominação e alienação sociais. Felizmente, a sociedade e nossas instituições democráticas conseguiram resistir.
A ordem, para os abonados de sempre, tem sido mantida para que eles permaneçam sobejamente abonados. Mudanças drásticas? Apenas as que deixarem tudo como sempre foi! Aos “súditos”, cabe apenas, nesta visão reacionária e escravocrata que nos governa, obedecer e pagar a conta da festa, sem dela usufruir, senão com as migalhas que os donos do poder deixam cair da mesa, e sem reclamar.
Outros mitos, que nãoos da Grécia Antiga, não obstante também os gregos o tenham assumido como seus, posteriormente, como os da Fênix, ave egípcia que renascia das próprias cinzas, podem ser associados a uma ideia antípoda do Narcisismo: a do renascer do próprio caos, ideia muito apropriada para o momento mundial e brasileiro. Males psíquicos e sociais como este Narcisismo podem nos levar a um estado lastimável de catatonia que é, na concepção médica original, uma perturbação de comportamento motor, cuja causa pode ser tanto psicológica quanto neurológica, mas que, individual e socialmente, é uma metáfora representativa da inação e da omissão conformista, assumida pela maioria egoísta, covarde e oportunista para promover mudanças drásticas que acabam deixando tudo como sempre foi. O fato é que ficamos paralisados perante o mundo e assim permaneceremos, tanto mais quanto maior for o Narcisismo a que nos permitirmos escravizar neste “mundo capitalista das celebridades a qualquer preço”. Não podemos mais permitir que esse sistema de vida nos conduza; não podemos mais deixar que a crueldade desumana nos aprisione. Temos que libertar nossas mentes nossos e corações dessa apoplexia (que é um derramamento de sangue cerebral, conhecido como AVC, que pode paralisar a pessoa ou mesmo deixá-la inválida) existencial e social. Urgente!
O Narcisismo é, assim, uma espécie de doença da psiquê humana. Psiquê, em grego antigo, lembrando, significa “alma; ego” e, atualmente, ou, já de há muito, também é uma palavra usada para expressar ideias como “mente” e “espírito”. Psiquê ou Amor também aparece, na mitologia, ora como amante de Eros, mais conhecido entre nós como “Cupido” (na versão latina), o Deus do Amor, ora como espécie de personificação da alma humana, um ser que é representado, por vezes, em forma de borboleta e que, tendo sido, anteriormente, uma lagarta, significa a crisálida que há, ou pode haver – que tem que haver, em todos e em cada um de nós.
A palavra “desastre” tem origem no italiano antigo, sucedâneo do Latim, “disastro”, que por sua vez vem do Grego antigo e, decomposta, apresenta o prefixo “dis” (que indica separação ou negação) e “aster” (estrela). Desastre é, pois, uma noite “sem astro” ou, em outro sentido, uma “estrela ruim”. Em uma acepção única, desastre pode ser um sinônimo possível para “desgraça”. Talvez por isso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1884-1898) dizia que dois homens podem olhar da mesma janela; porém, um pode só conseguir ver a lama da rua, enquanto o outro consegue ver as estrelas no céu. A perspectiva do observador e sua intenção são fundamentais para ver belas estrelas ou desastres motivados por estrelas ruins, por assim as definir, como, metaforicamente, a lama, do homem que insiste em olhar para baixo, desprezando outras formas de olhar e outros lugares para onde apontar os olhos, da cara e da alma.
Precisamos de uma grande catarse nacional que nos tire da catatonia da letargia e do torpor, individual e coletivo, cívicos em que vivemos e em que nos chafurdamos a mais não poder.
Renasçamos, pois, como a Fênix! Renasça, Brasil, com o fim dos narcisismos e dos fascismos! Façamos brotar a nossa crisálida de cidadania, generosa e solidária, de um país não apenas belo e alegre, mas livre, fraterno e justo!
Lembremos do mestre Machado de Assis: não sirvamos de linha para agulhas ordinárias: costuremos novas redes de afeto, gentileza, honestidade, justiça e dignidade, que durem e que acolham toda nossa riquíssima e bela diversidade e que, deste modo, acolham todas as pessoas boas, de direita, de centro-esquerda ou centro-direita ou de esquerda, negras ou brancas, espiritualizadas ou não, ricas ou pobres, do gênero que for, deste país!
Viva a vida e sua diversidade! Flanemos em novos sonhos, realizando-os com afeto e dignidade para todos, sem exceção.

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br
Fontes:
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – histórias de deuses e heróis. 34.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006
FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009
Carlos Fernando Galvão, Geógrafo e Pós Doutor em Geografia Humana, cfgalvao@terra.com.br










