Nelson de Oliveira (@paisagem.personas) é escritor, ensaísta, antologista e coordenador de oficinas de criação literária. Publicou os romances Gigante pela própria natureza e Bamboleio que faz gingar e as coletâneas de contos Vinte & um e Às moscas armas!. Das antologias que organizou destacam-se Fractais tropicais, de ficção científica brasileira, Mundo-vertigem, de ficção fantástica brasileira, e as antologias da geração 90 e da geração zero zero. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, intitulada “Simetrias dissonantes”. Venceu duas vezes o Prêmio Casa de las Américas, em 1995 e 2011.
Confira abaixo a entrevista escrita que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Nelson de Oliveira: Percebo que você escreveu Literatura com inicial maiúscula. Não é um simples detalhe… Sempre defendi que existem a literatura e a Literatura. Tempos atrás comecei a falar em literaturas e Literaturas, no plural, pois há muito mais de um tipo em cada categoria. Hoje eu simplifiquei a questão (ao menos pra mim). Agora eu falo apenas em literatura-artesanato e literatura-arte, sem usar maiúsculas. As duas categorias entraram em minha vida em momentos diferentes. Me apaixonei pela literatura-artesanato na adolescência, principalmente com os autores da ficção futurista anglófona: Heinlein, Dick, Bradbury, Le Guin, Asimov… Pela literatura-arte eu me apaixonei durante a faculdade, com os autores do nosso modernismo e do nosso concretismo, e também da ficção fantástica, principalmente Kafka, Borges e Cortázar.
AC: Como é sua rotina de escritor? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
NO: Atualmente, eu mais fujo do que persigo. As novas ideias não me dão sossego. Ficam de tocaia, armam emboscadas. Me assediam, noite e dia. Não sei se “a prática leva à perfeição”, mas certamente leva à profusão. Então, mantenho com as novas ideias certa confiança desconfiada, de paz armada. Isso me obriga a escrever todos os dias. São sessões curtas, de no máximo uma hora, mas suficientes pra aliviar a pressão criativa. Por fim, não costumo mostrar a ninguém meus escritos inéditos, em processo. Prefiro que as pessoas leiam a versão publicada, mais próxima da suposta “perfeição”.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
NO: De todas as partes: vida cotidiana, jornais, música, obras de arte, livros, quadrinhos, cinema, streaming, games… Quando alguém desenvolve o sexto sentido literário, todos os estímulos se tornam estímulos estéticos. Todos os fenômenos mundanos e artísticos viram matéria-prima literária. Minha literatura é sempre classificada como insólita, grotesca, bizarra, fantástica, porque é assim que o fluxo da vida é captado pelo meu sexto sentido literário. Por exemplo, a rapsódia Gigante pela própria natureza é protagonizada por personagens autoconscientes, sem livre-arbítrio. Um personagem autoconsciente é “alguém” que atingiu a total consciência de sua real condição de simples personagem numa obra de ficção. Pra esse personagem, o autor da obra é uma força externa, que controla seu destino, do mesmo modo que um titereiro controla os fios de suas marionetes. De onde surgiu essa ideia? A inspiração veio do cotidiano, primeiro, e em seguida da ciência (cosmologia e mecânica quântica). Eu não acredito em livre-arbítrio. Em minha opinião, todas as pessoas, o universo inteiro, seguem um roteiro pré-determinado no primeiro segundo do big bang. Estou com o Espinosa: “Os homens se enganam quando se pensam livres, e esta opinião consiste apenas em serem conscientes de suas ações e ignorantes das causas que as determinam.”
AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?
NO: Meu apartamento é assombrado por muitos fantasmas, mas o fantasma da página em branco… Ainda não fomos apresentados. Sempre que eu vou para o computador, vou empurrado por uma vontade fortíssima de começar a escrever um artigo, um poema, uma cena ou um diálogo no qual eu já comecei a trabalhar mentalmente, horas antes. Quando não é isso, é a vontade de revisar e retocar um texto ainda não finalizado.
AC: Um livro marcante. Por quê?
NO: É impossível indicar apenas um livro marcante. Foram inúmeros. Com muito esforço, e certamente cometendo uma injustiça, vou considerar apenas os últimos dez anos e indicar quatro obras da literatura brasuca recente. Quatro obras de ficção, de pelo menos uma dúzia de obras marcantes (prosa e poesia) publicadas nesse período: Festa na usina nuclear, de Rafael Sperling, Favelost, de Fausto Fawcett, O peso do pássaro morto, de Aline Bei, e Até que a brisa da manhã necrose teu sistema, de Ricardo Celestino. Justificativa: são exemplos formidáveis de nossa melhor literatura-arte contemporânea. Transgressões deliciosas: no assunto e na linguagem. Essas obras, e outras igualmente delirantes, fazem parte da muy essencyal & dysparatada byblioteka do LunaLaby [Laboratöryo de Lyteratura Lunätyka], que acolhe as coletâneas, as novelas e os romances mais excêntricos, mais heteróclitos. São obras que escapam dos modelos convencionais legitimados pelo senso comum.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
NO: Pela mesmíssima razão, é impossível mencionar apenas um escritor marcante. Foram inúmeros: poetas e ficcionistas. Certamente cometendo mais uma injustiça, vou repetir o filtro da resposta anterior e indicar os mesmos quatro ficcionistas. São prosadores inquietos, provocadores, que subvertem não apenas as linhas do tempo e do espaço ficcionais, mas principalmente o fluxo da linguagem literária.
AC: Na sua opinião, que características um bom conto deve apresentar?
NO: A surpresa, essa experiência tão subjetiva, é o que sempre caracteriza um bom conto, uma boa novela, um bom romance, enfim, uma boa narrativa literária. Na literatura-artesanato, que respeita as regras do jogo, essa surpresa acontece principalmente no plano do enredo, enquanto na literatura-arte, que subverte as regras do jogo, a surpresa acontece principalmente no plano da linguagem. Raramente acontece de uma narrativa oferecer as duas coisas: um enredo e uma linguagem surpreendentes. Quando isso acontece, a obra se torna uma festa para a inteligência. Uma epifania estética.
AC: Luiz Bras. Esse nome lhe parece familiar?
NO: Bastante familiar… Luiz Bras é um integrante do coletivo KriptoKaipora e uma das entidades encrenqueiras que habita minha consciência criativa. Às vezes ele assume o controle da máquina literária e escreve algumas ficções futuristas alopradas, sua especialidade. Não me lembro com nitidez de quando ele surgiu. Sei que foi no começo deste século. Havia muito ruído, reflexos e fumaça, na época. O poeta Valerio Oliveira e a cronista Sofia Soft, seus colegas de república (uma república imaginária), também não respeitam os limites da boa convivência e vivem disputando comigo o uso do teclado. São uns baderneiros.
AC: Sei que você foi o organizador de importantes antologias, como Geração 90: manuscritos de computador (2001), por exemplo. O que poderia nos dizer sobre essa atividade?
NO: Coordenar oficinas de escrita criativa e organizar antologias são atividades tão prazerosas quanto ler e escrever. Considero a organização de antologias uma forma de exercitar a crítica literária. Recentemente, organizei duas antologias muito significativas pra mim: Fractais tropicais, de ficção futurista, e Mundo-vertigem, de ficção fantástica. Lançada em 2018, a antologia Fractais tropicais nasceu do desejo de combater o preconceito histórico que a ficção futurista brasileira vem sofrendo desde o seu nascimento, um século e meio atrás. Lançada em 2021, Mundo-vertigem, por sua vez, surgiu da necessidade de contemplar um tipo extremo de literatura que, por falta de nome melhor, costuma ser chamado de “realismo mágico”,“ficção bizarra” ou “ficção fantástica”.
AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?
NO: Estou trabalhando em uma novela-móbile intitulada Bycho de nove kabeças, planejada pra ter oitenta e um capítulos curtos que poderão ser lidos em qualquer sequência. Essa possibilidade de leitura permutável, randômica, surgiu obviamente da apreciação constante de um de meus romances prediletos: O jogo da amarelinha, do Cortázar. O assunto principal de minha novela fora do eixo (articulável feito um móbile de oitenta e uma peças ajustáveis ao sabor do vento) são os conflitos sangrentos, as ações perversas e persistentes que torturam as sociedades humanas desde sua origem, no leste da África, há trezentos mil anos. Conflitos promovidos pelos muitos modos da Intolerância: racial, sexual, religiosa, cultural, política, econômica, de classe, de gênero, de idade etc. No plano da fabulação, os personagens dessa novela-móbile – personagens autoconscientes, que sabem que são apenas personagens numa obra literária – viverão uma espécie de isolamento ontológico, como se habitassem territórios diferentes. Esses territórios saberão da existência uns dos outros, mas não conseguirão se comunicar. Somente o leitor terá conhecimento do que realmente acontece em cada território.
AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?
NO: A pergunta mais difícil… Nas oficinas, quando me pedem um conselho, ou até mais de um, quando me pedem os “dez mandamentos do bom escritor”, decálogo que os escritores bem-sucedidos costumam divulgar sem qualquer pudor, na verdade o que estão querendo é a misteriosa receita do sucesso. Deixando de lado o fato comprovadíssimo de que muitos autores talentosos jamais seguem os conselhos que tão generosamente oferecem… A arte e a literatura estão muito longe do campo das ciências exatas. Autores, aceitem a verdade: talento, disciplina, persistência, muitas obras de inegável valor, prêmios literários, nada disso salvará a maioria de chegar ao final da vida com menos de cinquenta leitores. Então, meu conselho é: tenham sorte. Esse é o único ingrediente infalível na receita do sucesso. Que tipo de sorte? Num universo determinista, a sorte de seu sucesso já ter sido previsto no roteiro pré-determinado no primeiro segundo do big bang.
Bem, é isso. Até a próxima!
Colunista do canal LITERATURA
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AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).