CONTO DE QUINTA: Carolina

 

CAROLINA

 

Eu quero que você saiba que ainda não decidi se vou mesmo fazer. Não sei se quero levar essa coisa adiante, se preciso mesmo. Claro, sou ansiosa, mas acho que todo mundo é um pouco hoje em dia. É, depressão também. Levantar da cama às vezes é tão difícil… Esse mundo tá um caos. Agora que a pandemia acabou, acho que tá até pior. Sabe, me assusta um pouco a ideia de ter de dividir com alguém meus segredos, meus pensamentos mais íntimos. Eu sou atriz, acho que você não sabia, né? Claro que não sabia. A gente mal se conhece. Bem, tô começando, mas você acredita que meu primeiro trabalho profissional foi numa peça de Nelson Rodrigues? A temporada  acabou no domingo passado. Bonitinha mas ordinária. Não, eu não era a protagonista. Era uma das irmãs da Ritinha. A Vera Fischer fez no cinema. A Ritinha, eu quero dizer, ela fez a Ritinha. Acho ele um gênio. Foda mesmo. Manda muito bem. Minha família toda foi assistir. Tios, primos, gente que eu não via já há um bom tempo. Até a Marina, que já trabalha lá em casa há 20 anos, foi com a Betina, a filha dela. Meu pai também foi. Ficou meio chateado porque apareci de peito de fora. Mentalidade atrasada, meu Deus. Aquela cena tava completamente dentro do contexto. Por mim, ele nem teria ido. Não somos próximos, ele nunca se importou muito. Eu tinha certeza que ele ia reagir mal. Enfim. E depois eu não quero que as pessoas pensem que sou uma patricinha que veio fazer terapia porque não tem mais nada pra fazer na vida. Tipo pra passar o tempo, entende? Minha família não é rica. Bem classe média, e esse tratamento é meio caro, né? Acho que isso aqui até pode me ajudar no meu trabalho de atriz. Tudo tem prós e contras, não é mesmo? Eu posso começar. Talvez o ideal seja eu começar sem compromisso. Sei que não sou obrigada a nada. Não precisa você me dizer. Não sou tão tapada assim. Verdade. Sou filha única. Não sou mimada. Quando falo que sou filha única, as pessoas logo pensam isso. Bem ao contrário. Mas não posso negar que durante muito tempo eu desejei muito ter um irmão, uma irmã, um primo adotado que fosse, a casa mais cheia, mais barulho, mais agitação… Acho que você entende o que quero dizer, né?

̶  Carolina, minha filha, você ainda não está pronta? O táxi já chegou. Temos hora marcada. Por que você se olha tanto nesse espelho? Depois que você entrou pro teatro, resolveu ensaiar tudo. Até a vida.

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

Siga César Manzolillo nas redes sociais:

@cesarmanzolillo no

FACEBOOK ,

no INSTAGRAM ,

no X (TWITTER) e

@cesarmanzolillo no THREADS

 

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

5 comments

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *