Sempre considerei que as ideias pairam no espaço, sobre as cabeças ávidas por elas. Inoculam na perspectiva de serem disseminadas, ganhar conhecimento, reconhecimento, inspirar reflexões.
O título estava pronto, em andamento a pesquisa sobre literatura africana, especialmente dos países lusófonos, as influências, o legado.
Hoje, a notícia da publicação, no Brasil, do livro “Sangue Negro”, de Noémia de Sousa. Escritora moçambicana, Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu em 20 de setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), e faleceu a 4 de dezembro de 2002, em Cascais, Portugal. “Sangue Negro” foi lançado, em Portugal e Moçambique, em 2001. Reúne 46 poemas escritos entre 1948 e 1951, espalhados pela imprensa moçambicana e estrangeira.
Seus poemas cantam a Mãe África, os valores africanos, o protesto e a denúncia. Pioneira na literatura no país, prega a revolução como a única maneira de transformar as estruturas sociais que devastam a terra moçambicana.
José João Craveirinha, o poeta maior de Moçambique, prêmio Camões de 1991, diz: “Podemos sentir o hálito ardente da fogueira quando lemos os versos desta escritora, o que mostra em sua literatura a evidência da moçambicanidade, ou seja, a valorização da sua nação em seus poemas. Ler Noêmia de Sousa é ler Moçambique”.
Noémia também se destacou na luta pelo fim do colonialismo em seu país, e na construção do movimento da Negritude. Publicava seus versos em jornais, revistas e folhetos políticos.
Amou Salvador, onde o Brasil é mais africano, foi amiga de Jorge Amado e curtiu o samba.
Quer conhecê-la?
SE ME QUISERES CONHECER
Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos de bem ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde*
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.
Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir a vida.
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura…
Torturada e magnífica.
Altiva e mística.
Africa da cabeça aos pés
— Ah, essa sou eu!
Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de Africa,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando…
duma canção nativa, noite dentro…
E nada mais me perguntes,
se é que me queres conhecer…
Que eu não sou mais que um búzio de carne
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
*Maconde = uma das etnias de Moçambique.