Eu estava nos corredores dos camarins do Sesi da Avenida Paulista, quando a atriz Helga Nemetike veio na minha direção, e para minha sorte, nos encontramos ali. Ela como eu, mulheres da zona norte do Rio de Janeiro ocupando os espaços do Sesi da Avenida Paulista, um espaço que pulsa cultura com uma força expressiva. Digo que para minha sorte, porque eu queria assisti-la, mas já estava lotado e nesse espaço há respeito por TODOS os espectadores, há uma fila de espera e que impossivelmente eu conseguiria um ingresso, mas ao encontrar a atriz, duas pessoas tinham desistido e consegui assistir ao espetáculo “Não Conta pra Ninguém” (@naoconta_teatro), monólogo idealizado por ela.
Fiz duas críticas a atriz faz pouco tempo, uma que chamou muito a minha atenção onde ela dava vida a autora Hilda Hist e “Beetlejuice: O Musical“, uma atriz que sabe atuar com força e beleza, é da alma, é forjada no palco. E o palco, que pelo visto, também a cura. Ee a muitos outros. Obrigada Helga!
A atriz corajosamente apresenta uma obra sobre a sua vida pessoal e traz tudo aquilo que muitas de nós passamos na infância, abuso sexual. Ela usa da licença poética para dizer: eu passei por isso e tenho me libertado a cada dia, porque senhores leitores, é assim mesmo que acontece, não apagamos das nossas memórias tudo isso em um piscar de olhos, como se fossemos um robô, isso fica, e vencemos as ondas das memórias a cada dia. Parabéns, Helga!
A atriz entra no palco cantando L’Amour após o terceiro sinal, e claro que ela me deixou arrepiada, dali eu já percebia que aquele espetáculo iria mexer comigo. Essa é uma das minhas canções prediletas e lógico que reconhecendo “A Tragédia de Carmem”, logo entendi que seria apresentado uma montagem com um contexto forte e instigante. O desenho de luz também me auxiliou, César Pivetti, soube atuar com sapiência, aproveitando do teatro que é um dos mais equipados do Brasil.
O texto da Juliana Rosenthal vai desencadeando como uma bomba atômica, que precisa de um, dois, três códigos, é isso, o texto é descamado, não desvenda nada antes do tempo, é uma cadência de cenas e histórias antes da bomba explodir e no caso, levar a atriz ao ápice da história, a voar a cada apresentação, se libertar, não só ela, mas TODAS nós que a assistimos. A dramaturga nos leva a torcer por Helga, nos leva a um lugar secreto dentro de nós mesmas também, e péssimas lembranças que ficam em nós, e torturam, somente quem passa por isso sabe. E quando a autora liberta Helga, e ela voa em sua voz, voamos com a atriz, voamos mesmo! Choramos, mas um choro de felicidade. Incrível o que essa autora e o trabalho da atriz nos fazem sentir!
Digo mais, ela carrega Helga exatamente para onde a atriz precisava ir, a construção do texto é incrível, ela apresenta a protagonista recebendo uma mesa, essa mesa com tantas memórias que conflitam até aos dias de uma mudança a São Paulo, onde a atriz faria uma audição e nessa audição sua voz falha, e é preciso entender o que está acontecendo, e é o passado que não a deixa seguir, posso dizer que a costura é fabulosa. E essa costura se alinhava ainda mais com perfeição quando há o encontro da trilha sonora do Erick Bordiney. Ao tentar encontrar o motivo da ausência da voz, todas as possíveis etapas de um fonoaudiólogo é levado a montagem, enquanto um dos eruditos de Bizet é tocado, músicas que inclusive fazem parte do passado da atriz, tudo parece ser cerzido com ouro.
Mas tudo isso não é o suficiente para a autora e trilha, eles passeiam na vida da atriz, levando Helga ao passado menos distante, onde músicas de Alcione, Claudinho e Bochecha, a canção “Madureira”, de onde a atriz veio, são trazidas ao palco. Incrível como Helga brinca com sua voz, que é uma das melhores, não é à toa que Helga compõe grandes musicais, ela é radiante e de suas cordas vocais nascem tons muito mais que satisfatórios. A música escolhida como principal da obra é “Chandelier” da cantora Sia, que exige tons alto. Não é uma canção para qualquer artista do canto, mas é para Helga.
A canção foi escolhida para audição que personagem iria cantar, onde a voz falha no refrão, detalhe, o que diz:
“Eu vou voar como um pássaro pela noite
I’m gonna fly like a bird through the night
Sentir minhas lágrimas enquanto elas secam
Feel my tears as they dry“
O figurino é pesado e vermelho, elaborado por Camila Mundel, que soube trazer o brilho e também o tirar de cena quando preciso, expondo com delicadeza as formas da atriz, que bate um bolão. Sem arranhões, a figurinista soube trazer um figurino que oculta as joelheiras que estão no corpo da atriz, devido a excesso de movimentos corporais exigidas da direção.
E a direção? Já tive aulas com Michelle Ferreira, da minha parte posso afirmar que não há nela sanidade suficiente para ela mesma. Atua em dimensões pouco compreensíveis e é preciso estar conectado para entender cada ação, como uma mesa que mencionei no texto, que é quebrada, e que quebra também sentimentos, o passado da atriz, essa ruptura que dá asas para a libertação, quebrando os grilhões que somente uma mulher abusada sabe o que é, também presente na canção principal da montagem. Que loucura mais bem-vinda! Quem me conhece sabe que não suporto o que é sem sentido, dessa vez captei e posso dizer: que teatro racional pude assistir! Os ingressos são gratuitos no espaço, portanto se entende que a plateia pode ou não ser formada por intelectuais, por isso a importância de atentar ao texto, porque Michelle é braba. Ela voa e traz as loucuras mais sanas que vi nos últimos tempos.
Ela também assina a cenografia. Os objetos de cena, como uma máscara, me trouxe a sensação do teatro Grand Guignol (foi um teatro na região do Pigalle em Paris). Desde a sua inauguração, em 1897, até à data do seu encerramento, em 1962, especializou-se em espetáculos de horror naturalista com peças de teatro com histórias macabras e sangrentas), mas como disse, uma leve sensação, algo macabro, que também se uniu a luz do César.
Vale lembrar que esse estilo foi bem difundido na América do Norte.
Michelle não pecou, foi incrivelmente madura e pontual, sem atravessamentos desnecessários e muito menos rasa, foi fundo e nos fez entender absolutamente tudo. Um trabalho feito a mãos arteiras e bem niveladas na história a ser contada. Palmas para ti Michelle!
Uma obra forte e contundente, com a imensa atriz Helga que pela primeira vez, não tenho palavras, ela me deixou sem os precisos verbetes. Sempre falo dos artistas no primeiro parágrafo, mas dessa vez foi diferente. Tudo acontece ao redor da protagonista, que traz seu primeiro solo, que traz milhares de mulheres com a mesma história, com a mesma dor, incontidas com o passar do tempo. Helga não traz somente uma performance que encanta, traz verdades, traz seu corpo para impactar, traz a sua voz de uirapuru, a luz do fim do túnel, traz resultados, porque as mulheres de hoje, já não se submetem as doenças, ainda que psicossomáticas caladas, assumimos nossas vergonhas e as alheias, como fez uma de nossas cantoras nesse mesmo fim de semana. Helga representa a dor através do seu ofício e muito mais que isso, com excelência ensina o caminho da cicatriz, o que folgo em dizer ser divino para nós. Helga, voe alto, alce seus voos nessa direção, precisamos muito de você!
Bem, posso dizer que a curadoria presta um favor a sociedade quando obras como essas chegam (Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), nos três primeiros meses de 2024, foram registrados 789 estupros de vulnerável, ou seja, quando a vítima tem até 14 anos. Em todo o ano de 2023, foram registrados 3.420 estupros e em 2022, foram 3.133), em especial a nós mulheres. A obra me levou ao livro “Mulheres que Inspiram” da autora Anita Coutinho, terapeuta que traz histórias de mulheres que, como Helga, foi auxiliada por terapia. Um escolha assertiva. Parabéns curadores!
Quanto ao SESI, estar nesse lugar tanto para mim, quanto para a atriz Helga, digo em nome dela porque tenho a certeza que o sentimento é o mesmo, é uma HONRA ocupar o espaço SESI Avenida Paulista, que pulsa arte.
Em um final de semana o espaço abriu portas para uma mulher do subúrbio, uma transexual, uma descendente indígena e PCD e uma negra que atua em uma das mais perigosas comunidades do Rio, a Maré. Todas nós do Rio de Janeiro. Em outro espaço, o forró da nordestina Maria Fulo, que encantou o café do espaço, o que julgo divino, afinal foram os nordestinos que construíram a metrópole e também pintados e não esquecidos pelo imenso artista modernista e paulista Portinari.
E não podemos deixar de mencionar os trabalhadores do espaço que nos auxiliam com muito respeito.
Posso agradecer em nome de todas nós, aos PAULISTAS que nos receberam e nos aplaudiram, afinal, um artista sem público, é como flor sem cor, pássaros sem asas e perfumes sem seus aromas, simplesmente não existiríamos sem espectadores, muito obrigada São Paulo!
Sinopse
“Não conta pra ninguém é um espetáculo que convida o público a uma experiência reflexiva sobre o silenciamento das mulheres em situações de abuso. Com montagem forte e direta, porém sem abrir mão da delicadeza, o espetáculo é também um chamado às mulheres e aos homens a erguerem suas vozes. O SESI-SP acredita em criações que proporcionam a apreciação de novas visões artísticas, e, neste espetáculo, reafirma seu valor basilar: a arte e sua função educadora”, explica Eliane da Rocha, analista de Atividades Culturais do SESI-SP.
No espetáculo, que valoriza a nova dramaturgia brasileira, vemos uma talentosa atriz de musicais prestes a fazer uma audição para o papel de sua vida. Porém, nesse momento ela descobre que não consegue mais cantar. Depois de muita investigação, ela constata que a causa de seu problema vocal pode não ser física. Determinada a recuperar sua voz, a única alternativa é encarar os segredos de seu passado.
Entrevista com a atriz, do colega Bruno Cavalcanti
Ficha técnica
- Idealização e atuação: @helganemetik
- De @juliana_rosenthal
- Direção:@michelleferreirasp
- Ass. de direção: @jessmancini
- Design de Luz: @cesarpivetti
- Cenário: @michelleferreirasp
- Figurino @eucamilamundell
- Trilha Sonora @ericbudney
- Assessoria de imprensa: @julycaldas
- Produção: @aouila e @jullianadellacosta
SERVIÇO
Não conta pra ninguém
- Quando: de 8 de junho a 4 de agosto de 2024 , Sextas e sábados, às 20h30, e domingos, às 19h30
- Onde: Espaço Mezanino – Centro Cultural FIESP | Av. Paulista, 1313 – Bela Vista, São Paulo – SP
- Realização: SESI-SP, Tchequia Produções e Essegaroto Aouila
- Classificação indicativa: 14 anos. Entrada gratuita.
- Instagram: @naoconta_teatro
Facebook: @PortalAtuando