“Vivendo o dia de hoje”: uma arqueologia de afetos para uma vida serena

 

“Vivendo o dia de hoje”: uma arqueologia de afetos para uma vida serena.

 

“A maioria fica miseravelmente à deriva

Entre o medo da morte e as tormentas da vida e,

Não querendo viver, não sabe morrer”.

(Sêneca)

 

Começo a coluna com o título “vivendo o dia de hoje” entre aspas e já me explico: é uma máxima de ensinamento filosófico para um bem-viver de uma grande amiga, Dona Maria Lúcia. Sou adepto dos saberes oriundos desse estado de pensar e por isso acredito que a filosofia está em todas as pessoas e é para todas as pessoas. Basta uma mínima capacidade crítica-reflexiva voltada para o autoconhecimento, já ensinada por Sócrates desde o século IV a.C. Para ele, o caminho para uma vida feliz passava necessariamente pelo desconhecido caminho do ‘conhece-te a ti mesmo”.

Mas voltemos ao “vivendo o dia de hoje”. Nosso agitado cotidiano, incerto e muitas vezes sufocantemente exaustivo nos soterra num lugar de cansaço (físico e mental), de desânimo e desamparo. Sob as mais diversas formas, somos atravessados por essas paixões ruins, que insistem em nos visitar. Mas eis que há a amizade – um bom afeto, fraterno e revolucionário. Sim: uma amizade transforma uma existência. E para percebermos isso, não preciso citar exemplos para ajudar-nos no nosso exercício de memória, em busca de alguém, no nosso repertório de lembranças, que se encaixe nesta possibilidade: de contribuição para transformação de uma existência.

E para ajudar, proponho uma breve pausa nesta leitura. Fechemos os olhos…

Se nos voltarmos para nosso arquivo de memórias afetivas certamente descobriremos nesta arqueologia amorosa uma amiga ou um amigo que, de algum modo (minimamente: com uma palavra, um olhar, uma atitude, um abraço, uma mensagem, um aperto de mão, um silêncio…) transformou – afetou – impactou nossas vidas. E é neste sentido que reside a marca da amizade essencial. Para nos ajudar a atravessar caminhos áridos, que muitas vezes parecem intransponíveis, mas que se forem hidratados por bons afetos, pode ser permeável.

Para o filósofo Epicuro de Samos, em suas Sentenças vaticanas, uma obra com coletânea de oitenta e um aforismos, temos no fragmento número treze a seguinte afirmação sobre o sentido da amizade:

“de tudo aquilo que a sabedoria nos proporciona, para a felicidade de toda nossa vida, de longe o mais importante é a posse da amizade”. (p. 21).

O pensador vincula a sabedoria (σοφία) como meio para uma vida feliz, a partir da amizade (φιλία), um dos sinônimos gregos para o amor. E quando mencionamos afeto, automaticamente nos referimos a um outro. Não é apenas o indivíduo, o uno, mas um sentido de coletividade e de grupo. E para Epicuro, a sabedoria como virtude maior neste direcionamento ético.

E ainda sobre isso, na Sentença número cinquenta e dois, o filósofo acrescenta que:

“a amizade conduz sua dança pelo mundo inteiro, convidando todos nós a despertar para a celebração da felicidade”. (p. 50).

É uma sentença com nítida alegoria da felicidade como ‘efeito’ de um processo coletivo. A partir da amizade como repositório, como lugar de realização da felicidade. E vale destacar o aspecto do coletivo – não é individual e sim um múltiplo.

Epicuro é conhecido também como o filósofo da alegria, da celebração e do contentamento, que ecoa um sentimento ancestral, inato e comum a todo ser vivente: a busca da felicidade. E eu proponho uma atualização conectiva deste tema com outro filósofo que muito admiro: Ailton Krenak, representante dos povos originários, em uma de suas obras, Um rio um pássaro, lançada no Brasil em 2023, cuja edição original é em japonês de 1998! A obra foi elaborada a partir de registros de uma viagem de Ailton Krenak e do fotógrafo japonês Hiromi Nagakura, de 1994 a 97 pelas terras dos Yanomami, Ashaninka, Katukina, Yawanawá, Macuxi e Huni Kuin.

Krenak expressa seu pensamento em frases muito simples e bastante diretas, e percebemos esta transparência e fluidez de ideias – em analogia ao título da obra. E neste sentido, temos a sua reflexão sobre o caminho para a felicidade:

“Atingir o pensamento de que se pode passar por esta existência de modo mais silencioso será um grande avanço para os filhos do planeta. Nós veneramos o mundo criado pela natureza. Como tudo na natureza é muito lindo, nem sentimos necessidade de modificá-la. Todavia, a civilização, excessivamente autoconfiante, passou a pensar que se podem construir objetivos mais perfeitos e mais bonitos. (…) Isto demonstra que estão se achando os seres mais importantes de todo o universo. Entretanto, este é apenas um dos possíveis caminhos. Há o outro caminho, o de viver compartilhando com o mundo natural tudo de que precisa para a sua sobrevivência. Se é para existir e sentir a felicidade, não precisa de mais nada (…) E compartilhar amor e respeito mútuo. Assim são os povos originários”. (p. 41-44).

De modo bem objetivo, para o filósofo, felicidade é partilha. Sem nenhuma pretensão de tentativa de dominação da natureza ou ainda de um outro semelhante. Uma proposição de um agir e pensar comedidos, buscando homologar-se com o que há em volta, porque, para o pensador, em Um rio um pássaro, a nossa condição, enquanto espécie é de absoluta fragilidade:

“Quando chegamos à Terra, descemos como pássaros que pousam silenciosamente, e um dia partiremos de viagem ao céu, sem deixar marcas”. (p. 30).

Uma profunda e direta referência à condição de simplicidade do começo da vida. E de seu fim. É a condição de nossa natureza humana – por mais que tentemos nos iludir e fugir do fato inalienável e irrefutável que é este fluir. O começo e o fim. E talvez, a partir deste ponto de vista, poderíamos repensar nosso modus operandi, enquanto espécie – um caminho de partilha: de afetos e de ideias.

E, num sentido de alargar nossos horizontes existenciais, ainda na obra Um rio um pássaro, o pensador nos chama a atenção para a potência irrefreável que

“a vida é incontida, ela não para em lugar nenhum. Não há cofre que consiga reter uma quantidade de vida. (…) Produzir a vida é entrar em um fluxo, é ser correnteza, é pertencimento, não isolamento”. (p. 67).

Nesta breve citação, assim como o título do livro sugere, remete-nos ao ciclo da natureza: um fluir constante, que obedece a uma regra intrínseca e à sua própria racionalidade. E o ponto que destacamos aqui é que podemos (ou deveríamos) ‘aprender’ com a racionalidade da natureza. Com seus intervalos e periodicidades. Entender que assim como lá, a vida humana também tem momentos de abundância e de escassez. De altos e baixos. De silenciar e de falar. De partilha. Ciclos…

4princípio da vida. Cura”. (p. 73).

Não parece muito fácil pôr em prática o que acabamos de ler. Muito pelo contrário. Mas parte deste princípio o questionamento filosófico em si. E o que se aprende (ou deveria se aprender) com esses questionamentos e experiências cotidianas. Krenak nos conclama, seguindo a analogia do rio, a sermos menos reativos, deixando as coisas seguirem seu fluxo, sem tentarmos uma contenção e não respondendo com a mesma violência. Isto talvez seja um dos maiores ensinamentos que podemos apreender e (tentar praticar) no nosso dia a dia. Não responder na mesma intensidade. E “compartilhar amor e respeito mútuo” (p. 44), da obra dos anos 90, como direcionamento para a felicidade. PARTILHA. Vamos escutar estes saberes ancestrais?

A potência e a permeabilidade do pensamento de Krenak são intensas. É um convite radical a deslocarmos nosso modo de pensar ‘ocidental’ de (pseudo) garantias. Esse pensamento da floresta, esse modo de ser florestania, é uma mudança de perspectiva. Pensar outros mundos existentes, possíveis e plurais: vivendo o dia de hoje.

As ideias de Epicuro e Krenak estão tão vivas e atuais quanto são nossas existências, desejos e angústias. Mas pensemos na partilha, na possibilidade de viver plenamente o dia de hoje, porque como nos lembra o escritor Goethe em seu belíssimo romance Afinidades eletivas:

“o momento presente não aceita a alienação de seus enormes direitos. (…) porque o tempo não abdica de seus direitos.” (p. 113 e 257).

Então, vamos viver o dia de hoje?

E já que falei de felicidade, para ficar ecoando (ou quem sabe pra ouvirmos agora), deixo trecho da letra da música Felicidade, de Marcelo Jeneci, que nos fala tão lindamente que “felicidade é questão de ser”:

“Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz

Sentirá o ar sem se mexer

Sem desejar como antes sempre quis

Você vai rir, sem perceber

Felicidade é só questão de ser

Quando chover, deixar molhar

Pra receber o Sol quando voltar”

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

EPICURO. Sentenças vaticanas. Tradução e comentários de João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

 

GOETHE, Johann Wolfgang von. As afinidades eletivas. Tradução de Tercio Redondo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

 

KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

KRENAK, Ailton; DUARTE, Andreia. O silêncio do mundo São Paulo: n-1 edições, 2024.

 

KRENAK, Ailton. Um rio um pássaro. Tradução Yoshihiro Odo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023.

 

SÊNECA. Edificar-se para a morte: das cartas morais a Lucílio. Tradução e notas de Renata Cazarini de Freitas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. (p. 18).

 

 

 

 

 

Author

Me chamo Zalboeno Lins, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ e atualmente faço Mestrado em Filosofia Antiga pela UERJ. Também apresento palestras de temas de Filosofia num programa interno da Claro. E mais recentemente, também dou aulas para o CEFS - Centro de Estudos Filosóficos de Santos. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz!

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