Viajar na dor nem sempre agrada aos que não entendem dela

Vale dizer que  determinada crítica não é uma verdade absoluta, serve muitas vezes para análise de uma obra realizada, não é um texto para um artista, deveriam servir como algo construtivo, para ser revisto, se tivéssemos a liberdade de escrever o que queríamos muitas vezes, o que não é possível, pois muitas vezes não sermos atravessados por uma montagem pode ser visto até mesmo como ofensa, por isso escrevo somente sobre peças que me tocam, independente dos que os demais críticos ou jurados julgam.

 

A montagem é obra do Grupo 3 de Teatro, formado em 2005, são quase 20 anos na estrada, criando obras dignas de aplausos por serem muito bem sucedidas, como “Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante”, de Silvia Gomez. O grupo é composto por Débora Falabella, Gabriel Paiva e Yara de Novaes.

Dia vinte e sete do doze de dois mil e vinte e dois, sofri um abuso, fui a uma delegacia, a intimação chegou somente dia vinte sete do mês de julho em dois mil e vinte e quatro. Na semana anterior, no dia dezoito de julho desse mesmo ano, batemos o record de violência a mulher no Brasil.

Poderia ser só uma ficção, se tudo não fosse tão real em nossas vidas…

 

Trajetória do espetáculo

A peça estreou no Sesc Consolação (SP), seguindo temporada popular no Teatro João Caetano (SP), no Sesc Santo André, e no Teatro Vivo (SP), se apresentando também no Festival Internacional de Teatro em Rio Preto. O espetáculo ganhou uma versão audiovisual no formato de “websérie online” em comemoração aos 15 anos do Grupo 3 de Teatro que integrou a programação da Mostra de Repertório On Line Grupo 3 de Teatro e a Mostra Brasil de Teatro On line na plataforma de conteúdos on demand “Live Stage Ticketline”, em Portugal em 2021. Realizou também transmissão ao vivo pelo Sesc Pompeia, e apresentações em Guarulhos.

 

Sinopse

Na trama, enquanto aviões de várias partes do mundo decolam e aterrissam, uma mulher (Yara de Novaes) que trabalha como vigia do KM 23 de uma rodovia abandonada encontra, jogada no asfalto, uma garota (Débora Falabella) em estado de delírio após ser violentada naquela noite estrelada.

 

Crítica 

Infelizmente, por eu ter essa experiência, posso dizer que a dramaturga foi perfeita em sua construção, passando pelas etapas pós violência, sem um arranhão que seja. Lembro que naquele dia me senti em um deserto, preferindo a solidão. É uma sensação de vazio imenso dentro de nós. Sentimos vergonha, medo e perdidas, sem saber o que devemos fazer. Não vou esquecer que cada vez que voltava para casa, olhava para todos os lados com receio daquele homem estar por perto, me esperando na porta de casa, como ele fez durante três meses. Eu vi toda minha agonia na personagem da atriz Debora Fallabela. Lembrando até mesmo dos remédios, que me acalmavam, tudo que vivi estava no palco. A dramaturga trouxe a tão necessária sororidade através da atriz Yara Novaes “Não saio daqui sem você”, é o que a personagem dizia para acolher a vítima. A sororidade é uma arma potente entre nós mulheres, porque somente quem passou por essa situação sabe o tamanho da dor.

O espetáculo é inteligente, contemporâneo, dinâmico e afirmo que nos deixam conectados do começo ao fim.

O cenário do André Cortez é de uma perspicácia que transcende. São rampas que nos levam a uma pista de pouso de um aeroporto. A iluminação de André Prado e Gabriel Fontes Paiva, também compõe esse lugar, e servem para que a atriz Yara de Novaes brinque com sua belíssima atuação. O sinalizador utilizado no final, fala tanto, é uma luz no fim do túnel,  que conversa muito com a dramaturgia, o que o texto quer dizer implicitamente.  Há luz no fim do túnel! É preciso se agarrar a esperança e seguir, criar forças para continuar a caminhar ou se salvar do lodo dessas sensações, no sentido literal da palavra, afirmo. Inclusive, posso dizer que é uma das maiores mensagens desse espetáculo, resistir e sobreviver ao caos!

A iluminação também é contagiante, aliás, Gabriel foi indicado ao prêmio Shell em um dos seus trabalhos, “Um Precipício no Mar”, com a performance do ator Ângelo Antonio, um espetáculo envolvente. “Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante”, em um certo momento, quando se fala da mitologia grega, trazendo Diana, a iluminação é esplêndida, é como se estivéssemos de frente a Órion, como se a atriz Débora estivesse nessa constelação, sem contar com a postura longa do corpo da atriz, que combinou com perfeição a estética visual da deusa Diana (caçadora), com sua flecha. Sem falar com a iluminação que também chega como objetos de cena, quando a atriz Yara de Novaes joga sinalizadores no chão do palco, para que elas fossem localizadas pelo aeronave que vinha buscá-las, mais uma vez Gabriel iluminou com excelência cm a cm, parceria do André Prado!

Os figurinos de Namatame são básicos e também não podia ser mais do que ele trouxe. Quem conhece o profissional sabe das suas façanhas, faz indumentárias refinadas, na grande maioria nos deixa boquiabertos, mas nesse espetáculo atuou com sobriedade infinita, porque era exatamente isso que a montagem exigia. Bravo! Não o conheço, somente de nome, mas sou muito fã!

As estrelas Debora e Yara, brilham no palco, vão para além do que julgamos ser ótimo, elas trazem majestade em suas atuações.

As narrativas da Yara Novaes ao começar o espetáculo, que contam a violência vivida pela outra personagem, é tão perfeita que podemos ver o acontecimento, isso nos choca.

A voz dela cai bem, a maturidade da atriz a torna dona do palco.

Já Débora, apanha, se joga, dança, com movimentos escandalosamente surreais (com joelheiras, bem posicionadas pelo figurinista), e podemos ver um trabalho belíssimo da preparadora corporal da Ana Paula Lopez.

Penso que tudo passa, o tempo passa, e em nossas memórias ficam algumas coisas guardadas e uma delas que estará marcada em mim é quando a atriz Falabella canta “True Blue” da rainha Madonna (a cantora foi violentada aos 19 anos. ‘Ele era um cara muito amigável. Eu confiei em todo mundo’, disse ela em uma entrevista), ao iniciar a canção com um violão, a atriz tira uma dor dentro dela que podemos sentir na alma, que interpretação divina, e quando a música parece entrar nela, é como se a personagem estivesse sendo alimentada do que restava, e de pé mais uma vez, em outro ritmo, ela brinca no palco e cresce como um meteoro. Porque é assim, nos levantamos, nos apegamos a um filho, a um trabalho ou a arte, nesse caso, e mesmo com dor, somos obrigadas a seguir para minimizar estrago.

Chega de tristeza, dou um beijo de adeus
No more sadness, I kiss it good-bye

O Sol está explodindo no céu
The Sun is bursting right out of the sky

Procurei o mundo todo por alguém como você
I searched the whole world for someone like you

Você não sabe, não sabe que isso
Don’t you know, don’t you know that it’s

Afinal nos apaixonamos, mas não temos como adivinhar que essa paixão pode nos trazer tantos malefícios.

A verdade é que a montagem é uma síntese do que nos acontece a cada seis minutos no Brasil, uma verdade vergonhosa, que as leis não conseguem frear,  claro que existe um motivo para isso. Temos um judiciário composto por 60,4% homens, 38,7%, mulheres e 0,85% não declararam.

O texto quando a atriz traz Yara de Novaes questionando quem poderia ser o agressor e Débora Falabella responde que são muitos, quem encabeça a lista é  Zeus, a platéia ri. A violência contra mulher sempre existiu. Zeus era machista e misógeno. Leiam…

https://www.megacurioso.com.br/artes-cultura/121594-7-deusas-gregas-vitimas-de-machismo-e-misoginia.htm

A obra traz a Diana do Olimpo, o engraçado é que cobram essa força de nós o tempo inteiro e isso é uma merda! No entanto a dramaturgia traz um certo deboche, foi o que entendi. A Diana do espetáculo tem o poder de transformar homens em coelhinhos fofinhos e a Diana da mitologia deu a Actéon um par de chifres galhados, orelhas pontudas, as mãos e braços do moço, transformou em patas e cobriu o corpo do homem com pelo espesso. O homem correu como nunca tinha corrido antes, o seu grito tornou-se um uivo, e seus cachorros o caçaram e foi comido por eles. Isso porque Actéon a viu nua. E por que me pareceu deboche? Porque mesmo diante de tantos feitos, ainda sim nos olham muitas vezes com desdém, e outras vezes a polícia alega erro no sistema quando somos vítimas, risos. E fingimos que está tudo bem, vamos procriar coelhinhos, para isso servimos, não é mesmo? Se não estivesse em nosso foco as medalhas olímpicas de Paris.

O texto é formidável e  sensível, com um humor ácido na dosagem certa. Nada está para além, afinal quando machucar o corpo não é suficiente tiram as vidas de muitas mulheres ou será que esquecemos de Mércia, EloahTatiana Spitzner, Daniella Perez, Viviane Vieira do Amaral e tantas outras? 

Caramba, nós damos vida aos homens, somos nós as responsáveis pela vida no mundo, por que violentar? Por que matar? Por quê? Por quê?

Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante

NESTE Km 23,  foi o lugar onde foi violentada a personagem, mas pode ser qualquer lugar desse MUNDO, a rua onde moramos, um LOUCO pode aparecer e ferir o corpo e destroçar ainda que por pequeno espaço de tempo a alma de uma mulher, pode ser NESTA casa que você foi criada (o caso da atriz Helga, que está no Sesi Fiesp com sua história),  pode ser na falculdade, em qualquer uma NOITE dessa,  porque na maioria das vezes trabalhamos e não temos opção de horários, o KM 23 pode ser um consultório médico, pior que isso, a maca de um hospital durante o trabalho de parto de uma de nós. Mas uma coisa é certa, nada nos para, com dor ou sem dor, BRILHANTE é o que cada uma de nós será, em nossos ofícios, em nossa busca do saber, em nossas vidas!

Impossível falar desse espetáculo sem que essas informações cheguem. Fazer uma crítica técnica seria menos dolorido, eu sei disso, no entanto essa não seria honesta, e muito menos estaria de acordo com os artistas desse espetáculo, porque a licença poética da obra, embora Yara de Novaes brincasse com a luz e som que alimentava o espetáculo, tudo parecia um riso nervoso, musica comovente para um momento, tudo com um riso nervoso, como  o que vivenciamos quando entramos em uma delegacia ao dizermos que preferimos deixar de lado o assunto por não ter respaldo nenhum da lei…

“O delírio permite criar esse distanciamento, gerando uma fala nascida do impasse, permitindo falar da situação em um registro que foge ao melodrama, mas sem negar o terrivel, jamais”, palavras da dramaturga Silvia Gomez.

Eis o motivo do título dessa crítica “Viajar na dor nem sempre agrada aos que não entendem dela

Adorei ver a operadora de som Consuelo no palco, uma profissional amorosa, que ama o que faz, sempre coroada com muita alegria e generosidade. Uma profissional carioca que admiramos!

 

FICHA TÉCNICA

  • com Débora Falabella e Yara de Novaes
  • Texto: Silvia Gomez
  • Direção: Gabriel Fontes Paiva
  • Cenografia: André Cortez
  • Vídeo Cenário: Luiz Duva
  • Figurino: Fabio Namatame
  • Iluminação: André Prado e Gabriel Fontes Paiva
  • Trilha sonora original: Lucas Santtana e Fábio Pinczowisk
  • Participação especial: Banda La Majas – Mayarí Romero, Lucia Dalence, Lucia Camacho e Isis Alvarado, além do diretor Marvin Montes
  • Assistentes de direção: André Prado e Ana Paula Lopez
  • Assistente de Cenário e produção de objetos: Carol Bucek
  • Assistente de Figurinos: Juliano Lopez
  • Preparadora Vocal: Ana Luiza
  • Preparadora e direção de movimento: Ana Paula Lopez
  • Oficinas: Dione Carlos
  • Workshops: Maria Thais
  • Direção técnica e operação de luz: André Prado
  • Operação de Video: Pietra De Felippes Baraldi
  • Operadora de Som: Consuelo Mar
  • Camareiro: Jô Nascimento
    Técnica de palco: Giovanna Siciliano
  • Design de Som: André Omote
  • Cenotécnicos: Alexandre da Luz Alves e Murilo Alves
  • Assistentes de Produção: Carolina Henriques e Rommaní Carvalho
  • Assistente administrativo: Rogério Prudêncio
  • Identidade Gráfica: Patrícia Cividanes
  • Design Gráfico: Lucas Sancho
  • Fotos de material gráfico e divulgação: Fábio Audi
  • Fotos do espetáculo: Sergio Silva e João Caldas
  • Vídeo do espetáculo: FVFILMES
  • Gestão de Projeto: Luana Gorayeb
  • Direção de Produção: Jessica Rodrigues
  • Produção: Fontes Realizações
  • Grupo 3 de Teatro: Débora Falabella, Gabriel Fontes Paiva e Yara de Novaes

SERVIÇO

Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante

  • Com Grupo 3 de Teatro
  • Duração: 80 minutos
  • Classificação: Não recomendado para menores de 16 anos
  • Temporada: de 25 de julho a 18 de agosto, quintas e sextas-feiras às 19h e sábados e domingos às 18h.
  • Teatro Firjan SESI Centro, contemplando um total de 16 apresentações.
  • Valor do ingresso: R$ 40,00 (inteira)

 

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

 

Facebook: @PortalAtuando

 

 

 

 

Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *