Reproduzo hoje aqui essa maravilhosa resenha de Luiz Otávio Oliani, do não menos maravilhoso livro de Jorge Ventura, Outras Urbanas.
Confira!
“sou criança / no azul pátrio / das manhãs / marginais”, p.39
Jorge Ventura
Outras Urbanas, novo livro de Jorge Ventura, saiu pelo selo pessoal da Ventura Editora, 2023.
No prefácio, o poeta e ensaísta Adriano Espínola pinçou uma referência da poesia mundial. Trata-se de Charles Baudelaire, autor do clássico “As flores do mal”, que cantou a Paris do século XIX.
Depois, Espínola citou o século XX, com uma profusão de artistas que também cantaram os grandes centros urbanos. Todo este introito serviu para apresentar o mais recente livro de Jorge Ventura.
Sobre Outras urbanas, o prefaciador destacou “do signo verbal ao icônico”, com referência às imagens, fotos, aos desenhos e a tudo o que compôs a estrutura da obra, realçando a participação do designer Gustavo Gama e da artista Val Mello, criadora dos desenhos iniciais e finais do livro.
Por fim, além de analisar a obra em cada uma das seções, com estudo sobre as temáticas, Espínola concluiu que este volume trata de “um dos meus criativos e instigantes livros de poesia” ao seguir uma tradição inaugurada por Baudelaire.
Em “Convite à Reflexão”, o escritor e revisor textual César Manzolillo citou a importância de um livro ter um eixo temático sobre o qual gravita. No caso, isto não falta a Outras urbanas, já que a capacidade criativa de Jorge Ventura foi máxima ao elaborar “um conjunto coeso e harmônico”.
Manzolillo enalteceu que Ventura é “dono de uma sólida obra poética”, tendo escrito desde “poemas bem curtinhos” até textos maiores com “versos concisos”, agilidade de ritmo e secura na linguagem. Trata-se de um autor que promove a reflexão dos leitores através de intenso “deleite estético”.
A obra apresenta imagens e silhuetas do autor e da cidade em ângulos diversos, tudo em preto e branco.
Possui quatro seções, a saber: “Gentes”, “Bichos”, “Ruas” e “Caos”, cada uma representa um susto, um olhar diferenciado como a urbe é vista pelo poeta.
Seja urbe ou urbem, no ablativo ou no acusativo em Latim, língua morta, pouco importa, pois Jorge Ventura atravessa a cidade como um viandante, um pedestre a observar o que ninguém vê. É um flanêur ao gosto de Baudelaire.
E seguem algumas notas sobre a primeira seção do livro.
“Moleque”, p. 22, é dedicado à Cristina da Costa Pereira, professora e estudiosa dos povos de rua. Não à toa o poema mergulha nestes personagens, representados por malandros, mendigos e prostitutas; ou situações que passam desapercebidas, como a capoeira, o santo, já que “pessoas vêm e vão/ passam e passam / em vão”.
Se, em “Delinquência”, p.24, o eu lírico revela que a violência diária gera a “(…) infância morta a facadas / remorso do tempo perdido”, nota-se que, “no espelho, o corte profundo: / a cicatriz na consciência”; no poema “Ele”, p.28, a degradação à que o homem chegou revela como a sociedade “enxerga” um ser excluído do corpo social.
“Interiores”, p.30, traz outro viés do mesmo tema supracitado. Trata-se, agora, da degradação familiar representada por um eu lírico apático que “cresce mudo e só / no sofá da sala”, quando os demais familiares se rendem a atos rotineiros dentro do lar.
“Romance Urbano (em rima pobre)”, p.32, antecipa, pelo título, o recurso escolhido para gerar a musicalidade do poema. As rimas, os jogos sonoros e a rígida seleção vocabular, na artesania do poeta Jorge Ventura, aparecem em vários textos de Outras urbanas, como se lê em: “Droga”, p.33; “Raízes”, p.41; “Anfitrião”, p.43, “Capital Selvagem”, p.57; “Réquiem para uma flor”, p.78, entre muitos outros.
O olhar do eu lírico não ignora questões que a cidade enfrenta, como nos poemas “Droga”, p.33, e “Feminicídio”, p. 34.
Na seção “Bichos”, prevalece a dúvida: “(…) serei caça ou caçador?”, em “Dúvida”, p.49. Isto porque é preciso advertir os leitores em “Zoo I”, p.53: “(…) cuidado, Homem! / (raro animal racional peludo ou calvo) / o rifle da mídia costuma acertar seu público-alvo”. Lagartos, cobras, ratos, calandras, cães, morcegos, lobos, a cidade é, para o eu lírico, um verdadeiro zoológico, no qual os homens são personificados como exemplificam os textos “Autoassombro”, “Capital Selvagem” e “Engasgo”, respectivamente, nas páginas 56, 57 e 65.
E sobre “Capital Selvagem”, p.57, temos que: “(…) / a gente fode e se fode por dinheiro / a gente pode e se pode por dinheiro”, em alusão às políticas vigentes que privilegiam o ter em detrimento do ser.
Já em “Ruas”, terceira seção da obra, os poemas “Lockdown”, p.71, e “Memento Pandêmico”, p.72, aludem à passagem crítica que todos vivemos com a pandemia da covid-19. Assim “podem matar poetas / mas nunca a poesia / só morrem poetas / quando versos perdem vida”, p.72.
Um poema que poderia ser circunstancial, ao tratar de algo muito particular, mas não é, devido ao talento do autor, é “Praça Seca”, p.76 por se tratar do locus amenus do poeta, com fechamento ímpar do texto: “(…) calçada ‒ hoje buraco exposto no tempo ‒ / obra inacabada com desvios e contornos / me impede a saudade: desculpe o transtorno”.
A paixão pelo futebol aparece em “De todos os jogos o jogo”, p.81, título criativo que exalta o jogo de palavras através do plural metafônico.
O poema “Desorigem”, p.85, que encerra a seção “Ruas”, é marcado por uma derivação prefixal e registra um eu lírico perdido em busca da própria identidade.
A última parte do livro é “Caos”, que é aberta com bela metáfora no texto “Ovulação”, p.89: “a cidade é esse monstro / que se demonstra mênstruo / pronto a ovular o caos”.
Interessante observar os dois versos finais de “A chuva”, p.98, nos quais vem à tona a reflexão:” por que cargas d’água me submeto / submerso a esse banho incauto de despoesia?”
Balbúrdia, a desordenação das coisas, o intranquilo, tudo está no desfecho do livro através de “Tempos inexatos”, “Vampiros Urbanos”, “Parque Industrial”, respectivamente, páginas 94, 96 e 100, entre outros textos.
Já o longo poema “Segunda-feira”, p.103, traduz ipsis litteris o final de um domingo a iniciar o primeiro dia útil da semana: “(…) / a cidade se arrasta sem novidade/ ao raiar do dia ‒ mal entrecortado ‒ / a cidade se mostra pálida, trôpega”.
Ao final, uma divergência em relação ao conteúdo de “Cemitério Municipal”, p.77, no qual o eu lírico revela certo desapontamento ao ser esquecido tão logo morra. Convém dizer, no entanto, da perenidade da obra de Jorge Ventura cuja literatura sempre suscitará novas leituras, devido à excelência da produção.
*LUIZ OTÁVIO OLIANI é professor e escritor. Publicou 18 livros, incluindo poesia, conto, teatro e literatura infantil.
Veja também a nossa matéria completa sobre o livro e entrevista com o autor em :
Ótima resenha, ótimo livro.