Soteropoli Ta Na Mente. Uma viagem à rica cultura baiana

 

Coluna de ROSE ARAUJO

 

VOAR FAZ BEM AO CORAÇÃO. Assim começa nosso voo rumo a Salvador, sob as boas-vindas da GOL e do novo ano que se descortina.
O sentimento é bem esse, quando olhamos pela janela e nos deparamos com as asas abertas para nós, sobre nuvens tapeteando estrelas.
Algumas vozes vizinhas sussurram possibilidades de outros itinerários futuros e sugerem destinos e pacotes. Não me atenho, despindo-me de furtiva curiosidade. Apenas ouço as turbinas, que me invadem os tímpanos em ruido grave, rouco e sonoro, remetendo-me a tantas pessoas as quais me vêm à lembrança, a tantas histórias, narrativas e personagens ancestrais desse Brasil iniciado ali. Estamos a algumas milhas de soteropolitano destino.
As nuvens afofam o caminho e desvelam sonhos, perspectivas e sentimentos nostálgicos de algo que não vivi, mas que abrem um vácuo, um hiato em mim. Serão sete dias de [re]descobertas e fazeres, cultura e acolhimento.
Luis afaga as minhas mãos e fechamos os olhos, em oração, comemorando nosso amor-parceria-que-irradia-pelos-poros-e-laudas-da-poesia. E nos sentimos felizes. E essa alquimia faz toda a diferença.

Os ponteiros do relógio apontam vinte e duas horas e o contraste das nuances da noite nos conduz e aquece: é tempo de termos tempo. Voar faz bem ao coração. E amar também

: pousamos.

Somos recebidos por Julia com um cartaz verde – em fundo e em primicia – desejando as boas-vindas ao Luis, a mim e ao pequeno Jorge, menino lindo, de olhar vívido, nascido brasiliense, criado baiano e morador do Flamengo.


TODOS OS CAMINHOS LEVAM A BROTAS, assim nos diz Julia, por ser um bairro que interliga outros tantos. E dele partimos, rumo à Ilha, na expectativa de dias bons.
Sob a brisa da Baía de Todos os Santos atravessamos rumo à Itaparica, terra de João Ubaldo Ribeiro e da guerreira Maria Felipa. Durante o percurso salta-me aos olhos a decoração interna da embarcação, que leva e traz motores, carros, malas, mercadorias, sonhos, pedestres e é composta de várias mesas centrais, rodeadas por sofás de couro, onde recostam-se gentes, ao seu tempo e cansaço. Circulam vendedores ambulantes de todas as cores, oxentes, ó pais, misericórdias, arrochas, picoleichions e magias, em suas performances e verborragias. Compramos balinha de goma – o nosso amanteigado, no Rio – para adoçar a tarde e descansar do descanso.
Durante o percurso falamos da vida e da história do transporte, implantado em 1970, ampliando a malha naval e impactando positivamente as cidades do Recôncavo Baiano.
Dorival Caymmi – a embarcação, em homenagem ao artista – segue um luxo, em seu fluxo.

Chegamos. Tarde trincando – um sol para cada um – em brisa que toca suave a pele.  Aromas muitos despertam a fome, o estômago pede peixe. Escolhemos a praça principal de Itaparica, onde se entrelaçam sabores, memórias e os tons da terra. Subitamente, como que ao acaso – e acasos são apenas combinados desencontrados – , Luis avista à mesa do restaurante ao lado, Antônio Risério, antropólogo, poeta, jornalista e seu amigo desde os tempos de Brasília. Coincidentemente – e a coincidência encontra-se na mesma classificação anterior – viemos conversando sobre ele, por todo o percurso, e a possibilidade de um encontro na mesma Rua da Alegria: e o desejo se materializou.
Entre a escolha, o pedido e a chegada da moqueca, no mais puro dendê, trocaram histórias e contaram projetos futuros, na intenção de se verem com mais calma amanhã. Brindaram e despediram-se ali, em abraço afetuoso, mal supondo que no horário-combinado-meio-enrolado,  do dia seguinte, haveria desencontros. Este foi o único registro com o amigo Riso, ficando com gostinho de quero mais a oportunidade de um novo [re]encontro.

O sol recolhe-se, sem pressa, conduzindo a lua pelas mãos. Noite de terça-feira tranquila em Itaparica, com alguns poucos restaurantes abertos. Escolhemos o Solar do Rei, construção de 1606. Reparo em esculturas de baleias por toda a ilha, ao longo do dia, o que me aguça a curiosidade. E descubro, ali, que o seu óleo era utilizado nas construções locais: sim, explicada a homenagem!
Despedimos-nos desse dia ao sabor de caldo de sururu, iguaria tão saborosa quanto forte. Morfeu estende suas estrelas.

 


O DIA AMANHECE E O CRIADOR REGE A GRANDE ORQUESTRA. Sob a sinfonia de bem-te-vis e papa–capins, em meio aos pés de cacau, Costela, a pet local, nos recebe em festa. O dia descortina-se em verdejantes surpresas, oxigenando singularidades. Julia, Fabrício e Gui nos apresentam a Fonte da Bica, “onde as véia vira minina” e turistas de norte a sul do país retornam dela carregando seus frascos de água milagrosas, repletas de fé e maiores sentidos.

No repeteco dos acasos reencontramos Sara, companheira de Risério, na mesma bat-pracinha central. Sara despede-se de nós e nós de Itaparica.

FERRY BOAT DE VOLTA E O VENTO NOS CONVIDA A VOAR. Subi ao terceiro andar, de encontro à ventania em deus Tupã/Éolo, que embaralha os cabelos, sobe as saias impunemente, sacode os pensamentos e tira tudo do lugar. Voltamos à terra firme, na vontade de ficar, na promessa de voltar.


VOCÊ ESTÁ PARECIDO COM VOCÊ. Assim iniciou o encontro entre Emiliano José e Luis Turiba, velhos amigos que não se viam há cerca de cinquenta anos.
Emiliano José, jornalista, poeta, ex-professor da UFBA, deputado federal e membro da Academia Baiana de Letras recebeu-nos em sua varanda verde, com seu neto Lam cochilando na rede, em meio a muita emoção e brinde de boas-vindas.
Emiliano partilha conosco – sim,  transborda conosco –  sua dor aguda diante da perda recente de sua companheira Carla França, após longa batalha contra o câncer. Em vários momentos embargamos as vozes diante da ausência-presença de Carla, a nos receber em cada detalhe, cada flor, cada móvel, cada recanto ali revelado, sob o crepúsculo e o cantar dos passarinhos. Em meio ao luto Emiliano ressignifica a ausência da amada, escrevendo para e sobre ela, em doses homeopáticas de saudade, amor e delicadeza.
Emiliano e Luis fazem parte da mesma geração de resistência estudantil, perseguidos pela Ditadura – nomeada como Geração da Retaguarda – sobre a qual relembraram fatos, datas, colegas e lugares, destacando o Colégio Vocacional de S.P. como celeiro de resistência e grandes acontecimentos. Como se a tarde já não fosse um presente, em si, ainda fomos presenteados com quatro de seus mais de vinte livros lançados: O Cão morde a Noite / Em Carne Viva / Zanetti: O Guardião do óleo da Lamparina e o livro infantojuvenil A Revolução dos gatos no Planeta Azul, este dedicado à nossa princesa Luna. Luis também lhe presenteou com a Revista Bric a Brac e nos despedimos na compromisso de enviar-lhe o meu Quando Vida Poesia: tarde da mais pura poesia dos dias, embalada por Luiz Melodia.

EU PELOURINHO
TU PELOURINHAS
NÓS PELOURINHAMOS. E assim foi, finalizando o dia no centro histórico dos ritmos, axés e culturas ancestrais, com Julia e Gabi. Imergir nesse solo sagrado, em suas igrejas, suas belezas, liturgias e sincretismos é permitir-se algo novo, repleto de signos e significâncias: en can ta men to, é essa a palavra. É essa a palavra.

Em aroma de cravo, ao sabor do Cravinho, embalados por Tim Maia, desembarcamos no Terreiro de Jesus, aos pés do Pelourinho. A Cantina da Lua é o destino, a mais antiga da região, fundada em 1945 e administrada até hoje pela familia do fundador, o sr Clarindo.
Passeamos em paralelepípedos e seus muitos ritmos e estilos sonoros. A noite é efervescente em artes, história, badulaques e gente bonita de se ver. Antes da carruagem virar abóbora seguimos pra casa, sob as bênçãos de Jorge Amado, Ilê Ayê, Filhos de Gandhi e Olodum, após mais um brinde ao amor e à vida.


A TÁTICA DO LAVADOR DE PRATOS.
PRIMEIRO OS COPOS E OS TALHERES. EM SEGUIDA, ENFILEIRA-SE OS PRATOS E ENXAGOA-SE TUDO JUNTO, DE UMA VEZ SÓ. E POR ÚLTIMO OS PESOS PESADOS DAS PANELAS E GAMELAS, QUE MERECEM UM EXERCÍCIO EXTRA E ATENÇÃO ESPECIAL. Assim começamos o nosso sábado, o único de nossas férias, sob o olhar de Maria e Tchello,  os pets da casa. E ser sábado já é motivo de festa e poesia, como digo em meu poema “O Escolhido”. Mas voltemos a Salvador, em sua misturança de cheiro de xixi com acarajé.
Com o dia em mormaço e compasso, temos ainda trinta horas para [re]criarmos o tempo, nessa terra do mais puro sol, que vem de dentro. Hoje optamos por visitar o Cine Glauber, Elevador Lacerda – que liga a Cidade Alta à Cidade Baixa – a estátua de Castro Alves, o Mercado Modelo e provarmos a famosa Lambreta, petisco caudaloso que leva moluscos cozidos, cebola e muito coentro. Missão cumprida com sucesso, assim como o desafio do Cravinho – aguardente típica da região.  O peixe foi no belo restaurante Maria de São Pedro, com uma das vistas mais belas da Baía de Todos os Santos e abençoada pelos registros de Pierre Verger, que realizou um trabalho fotográfico de grande importância, baseado no cotidiano e culturas populares dos cinco continentes. À noite, bater ponto no Rio Vermelho, bairro boêmio e cult da capital, em seus personagens singulares e artes plurais. É de lá o Acarajé da Cira e também da Dinda. É de lá o amendoim cozido do Lipe, as flores da d. Noêmia e o arroz de polvo do Beco do França e seus acontecimentos. E é lá a Casa da Mãe, a Casa Rosa, o SESI, o templo de Yemanjá e outras muitas efervescências culturais.
Foi lindo? Ô se foi

… porque era sábado.


“MAIS ENFEITADOS QUE JEGUE EM DIA DE PROCISSÃO”, assim saímos para conhecer o Dique dos Orixás, a Arena Fonte Nova e o Farol da Barra – onde as ondas descansam –  após Luis receber do Fabrício um colar de contas do Filhos de Gandhi.
Domingo de sol a pino e celebração em família, reunida no bairro Federação. Fomos apresentados à d. Lúcia e seu Braz, casal querido e acolhedor, em licor de jenipapo, com os filhos e netos na partilha do prato principal: o cozido baiano, bonança, que leva charque e outras carnes, além dos tradicionais legumes.

Às dezoito, cantamos com Luiz Caldas na Marina, precursor do ritmo Axé, comemorando 40 anos de [re]existência cult-músical e hits-chicletes, de ontem, hoje e sempre. O aniversário é do Fabrício, mas o presente é todo nosso!

A vocês um poemeto, em gratidão por dias encantadoramente bons

SIMPLES

A felicidade habita o divino
e este o simples

Foi belo, feliz e simplesmente divino.

Salve Salvador, que acolhe, sacode, chacoalha, ilumina, reinventa e renova. Salvador salga: SALVAdorSALVA. Evoé!

 

 

 

 

Author

Londrinense-carioca, poeta de inspiração e designer gráfico de profissão, Rose Araujo coordena o Espaço Cultural da CasAmarElinha, em Itaipu - carinhosamente batizada de ItaiPAZ - na Região Oceânica de Niterói- RJ. Realiza lives, saraus e entrevistas sob o projeto itinerante da Passarela da Poesia (@rose_araujo_poeta ), projeto premiado pela APPERJ-RJ e Troféu Arte em Movimento, onde já passaram significantes nomes da poesia contemporânea brasileira. Estreou com o livro Quando Vida Poesia (Editorial Casa, 2022) em precioso prefácio de Tanussi Cardoso e grande receptividade de público e crítica. Membro da APPERJ-RJ, UBE-RJ, IICEM e PEN Clube do Brasil, Rose segue nas feituras do seu próximo livro, Poemas de Aguçar Sentidos, com lançamento em breve. E vamos juntos, evoé!

7 comments

  • Bem-vinda à família, minha amiga querida. E saudando Salvador, essa Bahia de todos nós. Viva a literatura, a prosa-poética roseana. Queremos mais, sempre! Grande beijo meu

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  • Adorei os textos diários , querida Rose Araújo! Parabéns! Com certeza é uma grande e feliz aquisição do tão apreciado Arte Cult. Sucesso! Beijos

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  • Bons dias !!!
    Lindo e muito amplo o texto de Rose Araujo !!!
    Consegui aqui, ao me deleitar com os escritos, realizar uma viagem turística e lúdica pela vistosa capital baiana !!!
    Parabéns e muito grato !!!
    Márcio Thadeu

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  • Parabéns a tão encantadora cronista, Rose Araújo, por sua narrativa rica em detalhes que nos transportam, sem que saíamos do lugar, para os locais visitados.

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  • Rose Araújo, amiga sempre inspirada na arte de costurar palavras e nos levar para outras dimensões por mais reais e terrenas que sejam. Me senti dando cada passo junto com essa gente linda, através da prosa lírica da escritora-poeta. Parabéns, queridissima!
    Sou sua fã, sempre! Axé!!!

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