Mulheres, negros, índios, quilombos, favelas, terreiros, Bahia, lavadeiras… O carnaval 2020 do Grupo Especial se anuncia como o diabo gosta: negro, forte e destemido, sem medo de ser duramente perseguido. Africana na raiz, a trilha sonora do maior espetáculo da Terra samba miudinho entre os temas de debate corrente e a festa de Momo, mais fundamental do que nunca.
Depois de consagrar suas Marias, Mahins e Marielles com a “História para ninar gente grande” de 2019, a campeã Mangueira leva Jesus Cristo ao morro com “A verdade vos fará livre” (ideia do carnavalesco Leandro Vieira, mente brilhante do carnaval e do Brasil atuais): “Eu sou a Estação Primeira de Nazaré/Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, canta Marquinho Art’Samba (cuja voz caiu como uma luva na levada da bateria Surdo Um) no samba de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo, integrantes da parceria de 2019.
Depois da esperada Mangueira, a ordem das faixas começa logo a sacudir o status quo, quando o irresistível refrão “Oh, mãe, ensaboa, mãe, ensaboa, pra depois quarar” vem de Niterói, trazendo a Viradouro (grande vice-campeã do último carnaval, no ano em que chegava do Grupo de Acesso) e sua homenagem às Ganhadeiras de Itapuã, grupo musical que leva adiante a tradição das lavadeiras. O sempre vibrante puxador Zé Paulo Sierra comanda a viagem à Bahia, ao folclore, ao terreiro. De azul e branco por este mundo sem fim, a Unidos de Vila Isabel homenageia Brasília em seguida, com um samba que é a cara do povo de Noel, puxado por Tinga, intérprete que transpira o DNA da agremiação. Raçuda, a canção chega à capital do Brasil pelas lutas de índios e escravos no Centro-Oeste.
Se a Vila fala de “Jaçanã e um índio chamado Brasil”, a Portela – que estreia em 2020 ninguém menos do que a dupla de carnavalescos Renato e Márcia Lage – vem de “Guajupiá, terra sem males”, enredo que conta a lenda dos Tupinambás, um dos povos que ocupavam originalmente esta terra. Gilsinho abrilhanta o samba assinado por Cláudio Russo e parceiros, dolente como a Portela, guerreiro como os Tupinambás.
Segue-se mais uma aula da Academia do Samba, comandada pelos professores Quinho e Emerson Dias: “Aqui o negro não sai de cartaz”, garante o Salgueiro, que conta a história de Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro do Brasil. Equilibrado entre a levada contagiante e uma combinação emocionante de melodia e letra, “O rei negro do picadeiro” mantém o alto nível da alvirrubra nos últimos anos.
Por falar em referência da arte brasileira e negra, a Mocidade entrega flores em vida a “Elza Deusa Soares”, na voz de Wander Pires. Com a habitual batida seca de caixas e tamborins, a escola da Zona Oeste traça o caminho de luta, tragédia e volta por cima da cantora e do Brasil que ela simboliza, o do Planeta Fome, em samba assinado por Sandra de Sá e parceiros. Salve a Mocidade!
De Padre Miguel para a Tijuca, mais uma voz inconfundível do carnaval traz o povo do Borel à Sapucaí: “A minha felicidade mora nesse lugar/ Eu sou favela” (é impressionante a coerência dos enredos…), canta Wantuir em “Onde moram os sonhos”, que marca o retorno do carnavalesco Paulo Barros à Unidos da Tijuca, onde foi campeão três vezes. O mexidinho da bateria de Mestre Casagrande garante a base para a obra de Dudu Nobre, Jorge Aragão, André Diniz e outros, feita sob encomenda.
Em São Cristóvão, não muito longe do Borel, o método foi o mesmo: mais uma vez, Moacyr Luz, Cláudio Russo e parceiros assinam o samba do Paraíso do Tuiuti, “O santo e o rei – Encantarias de Sebastião”. A pegada afro que caracteriza a escola em anos recentes emoldura a melodia que passa pelo monarca, pelo santo padroeiro do Rio e pelas lendas que o cercam. Carnaval em estado puro.
De São Cristóvão o Grupo Especial pega a Linha Vermelha e vai até Duque de Caxias, numa viagem de cerca de 20km e 70 anos que exalta o sacerdote Joãozinho da Gomeia, pai de santo visitado por nomes como Jorge Amado, Juscelino Kubitschek e dezenas de atrizes, atores e músicos. Celebrado como um dos enredos (e sambas) do ano, “Tatalondirá – O canto do caboclo no quilombo de Caxias”, da Grande Rio, canta o axé do baiano Joãozinho com garra, além de passar pelo essencial alerta contra a intolerância: “Eu respeito o seu amém, você respeita o meu axé”, na voz de Evandro Malandro.
Pegando a mesma Linha Vermelha de volta, o disco desembarca na Ilha do Governador, onde o monstro Ito Melodia canta “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: salve-se quem puder”, um emocionante hino de louvor ao povo das comunidades. Encruzilhadas, becos e vielas também aparecem, em abordagem diversa, em “Se essa rua fosse minha”, com que a Beija-Flor fala dos caminhos por onde o homem anda desde o início das civilizações, não esquecendo, é claro, os orixás e o povo da rua. “Nilopolitano em romaria/ A fé me guia”, garante Neguinho da Beija-Flor, mais de quatro décadas de serviços prestados à azul-e-branco da Baixada.
Promovendo a estreia de um craque do humor, Marcelo Adnet, no posto de compositor de samba-enredo (com parceiros), a São Clemente volta a um tema caro e necessário ao carnaval: a malandragem, para o bem e, principalmente, para o mal, em “O conto do vigário”. A escola de Botafogo revive seus dias de crítica social (o que a levou ao Grupo Especial lá nos anos 1980) no belo samba puxado por Bruno Ribas, Leozinho e Grazzi Brasil. “La garantía soy yo!”.
Para fechar a coleção, o velho Estácio reaparece no Grupo Especial, em edição luxuosa comandada pela carnavalesca Rosa Magalhães (que fez história na escola décadas atrás): “Pedra” é mais uma viagem dela (bem amarradinha, como sempre), que passa pela mineração, pela construção e tudo o que tem minerais envolvidos. Outro profissional com história com o povo do Morro de São Carlos, Serginho do Porto comanda com firmeza um samba melódico e criativo.