
Elenco e Direção de “Poesia do Samba”. Foto: Thaysa Lota
O samba poderia ser erudito, mas não é, e tenho certeza de que ele não faz questão de ser. O certo é o samba, porque ele é democrático, vive na boca do povo, de todos nós, brasileiros. É preciso ter orgulho do samba para se aprofundar nesse mergulho.
“NEGRA PALAVRA – POESIA DO SAMBA” é o novo espetáculo da Cia Complexo Negra Palavra.
O espetáculo tem beleza, poesia rimada em sua construção dramatúrgica, o que o enriquece ainda mais. A direção de Renato Faria é agradável e assertiva. Os artistas estão bem distribuídos no palco, com expressões faciais e corporais divinas, mas não só isso: apresentam vozes bem projetadas e uma capacidade relevante de encantar a plateia. Esse é um dos pontos altos da montagem.
Falar do samba com o próprio samba foi eficaz. Mais que isso: provou a cada espectador que o samba está em nós, pois, mesmo declamado, sem ritmo musicado, reconhecemos todos eles e nos deixamos levar pelos maiores compositores desse estilo musical nascido do povo preto. Sob esse viés, nenhum brasileiro deveria ser racista.
A direção é dividida: Muato é o outro diretor, ganhador do prêmio Shell e indicado ao prêmio Bibi Ferreira por suas direções musicais. Não falhou. Soube trazer todas as canções que o povo carrega na ponta da língua, conduzindo-nos a uma imersão em nossas memórias para buscar qual música estava sendo dita através da boca dos artistas. Assim, nos deleitamos em silêncio, à procura do ritmo de cada uma, e quando descobrimos, já somos levados a outra canção — mais uma vez declamada, em forma de texto.
ANANDA ALMEIDA e RAPHAEL ELIAS assinam os figurinos, que transbordam generosidade e esmero. Elegantes, as peças dialogam entre si de forma profícua. Dos sapatos às texturas e padronagens dos tecidos, das bijuterias e adereços às boinas e chapéus, tudo se move em perfeita sintonia. O brilho dos sapatos me remeteu ao samba de Cartola, daqueles homens que, mesmo com pouco, tratavam seus ritmos e letras com respeito e dignidade, vestindo-se com refinamento dentro de suas possibilidades.
A iluminação de ANA LUZIA DE SIMONI… o que dizer? Já não tenho palavras. Ela parece estar em todas as fichas técnicas de teatro no estado do Rio de Janeiro — e por quê? Porque dela nasce, de fato, a ideia de iluminar. Ela é erudita, pois vai além do esperado: luz a pino, contraluz, luz lateral… esta última, trazendo sombras de intensidade marcante. Talvez seja mais fácil começar a usar CTRL C e CTRL V para descrever seu trabalho, pois não encontro mais palavras.
O cenário é simples: algumas cadeiras de estilos diferentes, que se movimentam pelo palco como os próprios artistas.
Os artistas
ADRIANO TORRES, EUDES VELOSO, JOÃO MANOEL, JORGE OLIVEIRA, LUCAS SAMPAIO e RODRIGO ÁTILA. Como atriz convidada, OLÍVIA ARAÚJO.
A atriz Olívia me trouxe uma autocobrança: como eu não a conhecia? No entanto, reconheci nela todas as mulheres do samba. Vi Jovelina, vi Dona Ivone Lara, vi Clementina. Essa sensação me acolheu e me abraçou. Quando a atriz sentou-se ao meu lado, senti-me confortada, com uma imensa vontade de abraçá-la, pois ela trazia o samba em sua liberdade — algo que, até pouco tempo atrás, nós, mulheres, não podíamos. Olívia tem um “quê” das damas do samba que não consigo definir. Só sei que todas elas estão nela.

“Poesia do Samba”, a atriz Olivia Araujo. Foto: Thaysa Lota
Quanto aos atores, donos da percussão corporal, dos chiados nos lábios, dos sambas nos pés, da poesia viva e dos olhares brilhantes, tenho muito a dizer. Lembro deles ainda muito jovens em Solano Trindade. Esses meninos negros, a meu ver, já consolidaram suas identidades cênicas.
De Lucas Sampaio, recordo-me de tê-lo assistido anos atrás, quando trazia tranças com búzios presos nas pontas. Naquele dia, percebi que eu via um ator entregue no palco, brincando de interpretar. Talvez ele não saiba que sou sua fã. Em Poesia do Samba, com um terno ajustado, ele desenha um malandro cheio de devaneios risíveis. Em certo momento, colocou a cadeira à minha frente e declamou O Mundo é um Moinho, do meu ídolo Cartola. Enquanto recitava, olhando-me nos olhos, eu viajava no tempo com a canção na mente. Minha vontade era dizer-lhe, ao som de uma flauta transversal: “Preste atenção, querido, você não tem sonhos mesquinhos. De cada trabalho colherá frutos para um futuro brilhante. E eu? Estarei sempre por perto para aplaudi-lo.”
Preciso acrescentar: se o grupo soberano O Galpão tem artistas excepcionais com pleno domínio musical, esta companhia não fica atrás. Sua percussão é perfeita e incendiária. O povo preto tem identidade e sabe alimentar o fogo da alma com batidas que já não ecoam nos pelourinhos, mas sim como música de artistas talentosos.
Eudes Veloso é um guerreiro, sempre atuando por trás da companhia, entendendo sua responsabilidade. O teatro exige burocracia, organização administrativa, disputa por espectadores e a garantia de existência de uma montagem. O cuidado de Eudes é nítido. Como artista, segue para marcar gols.
Adriano Torres é o sorriso negro do espetáculo, atuando sempre com alegria e persuasão. De um corpo gay a um menino da Funabem — pela denúncia social —, não falha. É um artista simpático, livre e sem receio de dialogar com o público através das expressõews faciais.
JOÃO MANOEL, JORGE OLIVEIRA e RODRIGO ÁTILA são artistas que conheci recentemente, mas que não ficam atrás dos demais. Jorge Oliveira me chamou atenção ao quebrar qualquer tipo de preconceito ao versar para um homem da plateia. Esse momento me fez aplaudi-lo com a alma, por se fazer entender que o amor tem suas formas.
- Elenco “Poesia do Samba” . Foto: Thaysa Lota
- Elenco “Poesia do Samba” . Foto: Thaysa Lota
Alguns ritmos as pessoas gostam apenas em certas épocas do ano; em outras, fingem que não gostam. As razões, mais do que estéticas, são sociais.
Como dizem as últimas palavras do livro 500 Anos da Música Popular Brasileira, do Museu da Imagem e do Som:
“Os pagodeiros de São Paulo, os sertanejos do Centro-Oeste, os mineiros dos clubes de todas as esquinas, os velhos e os novíssimos baianos, mestres do charme e da malemolência, os rastafáris maranhenses, loucos pela Jamaica, os grupos amazonenses garantindo seus bois, os nordestinos em geral, o povo do Sul… enfim, toda essa gente mais ou menos bronzeada anda mostrando seu valor há muito tempo e abrindo os ouvidos do Brasil e do mundo para o nosso som moreno. Mas esta terra é do samba, o samba é o nosso dom, e são os sambistas que traduzem a síntese étnica da população deste país — discriminada, ativa, pobre e talentosa, ‘criloura’, como se diz na Mangueira. Os que estão aí há muito tempo, os que estão chegando e os que ainda vão surgir continuarão compondo essa roda bonita, porque tem a cara e a cor do Brasil.”
O espetáculo é uma delícia e só peca por não continuar nas ruas.
Parabéns, CCBB, por esta homenagem ao samba!
FICHA TÉCNICA

Elenco “Poesia do Samba” . Foto: Thaysa Lota
- Idealização: EUDES VELOSO e RENATO FARIAS
- Poetas: ARLINDO CRUZ, BETO SEM BRAÇO, BEZERRA DA SILVA, CAMUNGUELO, CARLOS CAETANO, CARTOLA, FUNDO DE QUINTAL, GERALDO PEREIRA, GUARÁ, JORGE ARAGÃO, JOVELINA PÉROLA NEGRA, LECY BRANDÃO, MANELZINHO MENEZES, MÁRIO DÉCIO DA VIOLA, MARTINHO DA VILA, NEI LOPES, NELSON CAVAQUINHO, NELSON SARGENTO, PAULINHO DA VIOLA, RODRIGO LEITE, SERGINHO MERITI, SILAS DE OLIVEIRA, SYNVAL SILVA, WILSON BAPTISTA e ZÉ KÉTI
- Roteiro e Dramaturgia: RENATO FARIAS
- Historiadora: ÉRICA PORTILHO
- Direção Artística: MUATO e RENATO FARIAS
- Direção Musical e Trilha Sonora Original: MUATO
- Elenco: ADRIANO TORRES, EUDES VELOSO, JOÃO MANOEL, JORGE OLIVEIRA, LUCAS SAMPAIO e RODRIGO ÁTILA
- Atriz Convidada: OLÍVIA ARAÚJO
- Direção de Movimento: TAMIRES MUTAWA
- Oficina de Samba: CATEN
- Direção de Arte: RAPHAEL ELIAS
- Figurino: ANANDA ALMEIDA e RAPHAEL ELIAS
- Iluminadora: ANA LUZIA DE SIMONI
- Assessoria de Imprensa: MARROM GLACÊ COMUNICAÇÃO
- Designer: WOLMIN DAHGROTA
- Redação Publicitária: TICO MIRANDA
- Administração de Redes Sociais: MARCUS PAULO VELOSO
- Gestão de Marketing Digital: LUCAS SAMPAIO
- Produção Master: FERNANDA XAVIER
- Produção Técnica: JORGE OLIVEIRA
- Produção Materiais Gráficos, Áudio e Vídeo: BEATRIZ TOMAZ
- Produção Fornecedores e Parcerias: THIAGO HYPOLITO
- Assistência de Produção: LUCAS BAPTISTA e PEDRO BARRETO
- Coordenação de Projeto: EUDES VELOSO
- Parceria: COMPANHIA DE TEATRO ÍNTIMO e INSTITUTO HOJU
- Realização: COMPLEXO NEGRA PALAVRA e SAIDEIRA PRODUÇÕES
SERVIÇO
“NEGRA PALAVRA – POESIA DO SAMBA”
- ONDE: Teatro III – Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro – RJ
- QUANDO: Temporada: 11 de setembro a 5 de outubro de 2025
Quinta-feira a sábado às 19h | Domingo às 18h | Segunda-feira às 19h - QUANTO: Inteira: R$ 30 | Meia: R$ 15, disponíveis na bilheteria física ou no site do CCBB (bb.com.br/cultura)
Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada - Classificação Indicativa: Livre
- Duração: 60 minutos
CCBB – RJ
Tel. (21) 3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br
Informações sobre programação, acessibilidade, estacionamento e outros serviços:
bb.com.br/cultura
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Funcionamento: De quarta a segunda, das 9h às 20h (fecha às terças).
ATENÇÃO: Domingos, das 8h às 9h – horário de atendimento exclusivo para visitação de pessoas com deficiências intelectuais e/ou mentais e seus acompanhantes, conforme determinação legal (Lei Municipal nº 6.278/2017)

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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