Com tanta informação bombardeando a gente, é impossível guardar tudo que se vê, escuta, lê. Impossível. Mas quem disse que a gente se conforma? A gente olha, assiste, ouve e coloca pra dentro mais e mais informação, e na hora de chamar o filho… “Oh, oh, oh esse menino, vem cá.” Como é mesmo o nome daquele filme? Com aquela atriz? Daquele diretor? Eu vi outro dia com quem mesmo?…
E quando a memória dá uma pista esmaecida, a gente peleja, insiste, dá uma googlada e uma pista leva a outra, que leva a outra, que leva a outra. Algumas vezes, temos êxito na caçada à informação perdida. Outras vezes, a saída é se apoiar nos amigos da vida toda, nos amigos da faculdade, nos amigos da fase adulta. Resumindo, nos amigos! Porque os inimigos só lembram das coisas que deveriam ter sido esquecidas. Melhor evitar.
Sempre tive vergonha da minha memória cheia de lacunas, uma ausência de registros, quase uma não memória. Mas depois da palestra reveladora do Gonçalo M. Tavares na PUC-Rio, um portal se abriu, ele garantiu que estas lacunas são o espaço da imaginação. A minha é enooooorme, fato! De posse desse trunfo, mais sem vergonha, me sinto à vontade de pedir ajuda e até mesmo pedir emprestada a memória alheia. E, com cerimônia zero, passo adiante a memória dos outros como se minha fosse, muitas vezes acrescentando um ponto ou dois, floreando aqui e ali.
Não à toa, Carlos Heitor Cony dá o título de um de seus livros de “Quase Memória” – o que é verdade e o que é inventado? Tem importância? Essa é a questão que se apresenta em “Jogo de Cena”, do genial Eduardo Coutinho. Atrizes e não atrizes se revezam numa cadeira na platéia de um teatro, e cada uma dá seu depoimento. Quem está representando, quem está contando a própria história? Um documentário para se assistir inúmeras vezes. Cada vez vai nos deixar algo, criar diferentes lacunas. Novos esquecimentos.
Porque o espaço é fundamental. É na ausência que se cria uma imagem, um conceito, se cria seja lá o que for. O vazio, a carência gera a necessidade – necessidade de fazer, procurar, conhecer, cativar. Ninguém quer a falta, mas ela sempre se apresenta, pode contar, ela vem. E, em alguns casos, a carência é tanta, tamanha, numa proporção que a esperança fica espremida, entre um afazer e outro.
Em “A Pessoa é para o que Nasce”, as três irmãs cegas que tocam e cantam em troca de esmola nas cidades e feiras do nordeste brasileiro dão uma lição de vida para quem consegue ouvir. Durante as filmagens de uma série de TV, Roberto Berliner conhece as três irmãs e se encanta. Desse encontro nasce o curta e, posteriormente, o longa. Tudo a seu tempo. A exposição transforma a vida dessas mulheres, de uma hora para a outra a maré muda, viram celebridade com direito a visita e música de Gilberto Gil – tudo isso registrado no documentário. Sem rodeio, elas falam aquilo que estávamos mesmo precisando ouvir.
As frases do curta:
_ Agora, eu achava melhor se uma pessoa se lembrar de mim, pra nunca se esquecer,não se esquecer.
(…)
_ Tem dia que eu tô com vontade de ganhar o mundo
_ Desaparecer e não vim mais.
_ A pessoa é para o que nasce, né?
_ Ninguém não pode dar jeito né?
_ A pessoa tem que cumprir com aquele destino que Deus dá.
_ É porque foi feito por Ele.
No caso das três senhoras, a cegueira traz uma visão de coisas simples, elas explicitam, personificam a necessidade de não enxergar para conseguir ver. Somente não vendo o presente é possível ver passado e futuro. O “não ver” é necessário para que se apresente um “ver além”. Talvez não seja nada disso, mas imaginar que essas nordestinas têm um quê de mitologia grega, associá-las ao famoso profeta cego de Tebas, Tirésias, que, no momento em que perdeu a visão, ganhou o dom da previsão, faz parte da minha contribuição para a memória do filme.
Agradeço aos amigos que sempre contribuíram para a minha memória da vida.
Notinhas
“A Pessoa é para o que Nasce” – trailler do longa – https://www.youtube.com/watch?v=fBit6jVdgKQ
“A Pessoa é para o que Nasce” – curta – http://portacurtas.org.br/filme/?name=a_pessoa_e_para_o_que_nasce
Jogo de Cena – filme completo – https://www.youtube.com/watch?v=RUasyqVhOuw
Muitas idéias desenvolvidas neste texto vieram da palestra do Gonçalo M. Tavares na PUC-Rio – https://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alo_M._Tavares
Porta Curtas – esta semana dedicada à memória e história – http://portacurtas.org.br/
Matéria da Superinteressante sobre Memória – http://super.abril.com.br/ciencia/memoria-esquecer-para-lembrar
Crítica do livro “Quase Memória” de Carlos Heitor Cony – http://biblioteca.folha.com.br/1/30/contracapa.html
Livro “Tempo Passado – Cultura da Memória e Guinada Subjetiva” de Beatriz Sarlo, da Companhia das Letras (indicação de um amigo) –http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12281
Tirésias – https://pt.wikipedia.org/wiki/Tir%C3%A9sias
Pesquisa nas ruas com Os Trapalhões – https://www.youtube.com/watch?v=dPk84MqVWDI
(essa eu não lembrava, mas Os Trapalhões – como esquecer?)