Muitos poetas já escreveram, em algum momento, sobre a morte. A finitude é condição que aflige ao homem e, por isso, faz parte das suas reflexões sobre a vida e reflete em sua arte e filosofia.
Mas, quando penso em poetas que falam sobre a morte, dois nomes saltam primeiro à memória, por motivos diferentes: Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira.
Augusto dos Anjos é mesmo chamado, por muitos, “poeta da morte” . Sua poesia transgride e inaugura uma estética própria: uma linguagem visceral, crua, por vezes repulsiva; imagens de horror, dor e morte. Tendo a morte como personagem central da maioria de seus poemas, provoca questionamentos existenciais. Mas isso se dá a partir de uma descrição orgânica, literal, por exemplo, com alusões à podridão ou aos vermes que devoram os corpos. Trata, essencialmente, da miséria humana, a do corpo e a do espírito, negando a religião como explicação do mundo e agarrando-se à racionalidade (e ciência) na tentativa de superar a angústia. Embora fosse um poeta do Simbolismo, muitos o consideram um pré-modernista, por causa de sua ruptura estética. Vale destacar que a estrutura de seus poemas bebe, também, nas fontes do Parnasianismo. Sombrio, repulsivo para os críticos da época, Augusto dos Anjos não se consagrou em vida. Hoje, é reconhecido como, talvez, o mais original dos poetas brasileiros. Seu livro “Eu” é um dos mais reeditados e ele é um dos poetas mais lidos da atualidade.
Seu poema mais famoso, “Versos Intimos”, descreve um mundo de ingratidão, que transforma o homem, por necessidade, também em fera para proteger-se da vida. Estão nele versos famosos do poeta, como “O Homem, que, nesta terra miserável,/Mora entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera” e “O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/A mão que afaga é a mesma que apedreja.”
Mas, sobre o tema da morte, escolhi para breve análise, o poema “Psicologia de um vencido”:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
O poema é um soneto decassílabo, opção estrutural que remete ao Parsianismo (cuja forma estrutural privilegiava sonetos com decassílabos perfeitos ou versos alexandrinos). A descrição da condição humana: desde a infância, as dificuldades da vida e do mundo que o cercam lhe causam sofrimento, a ponto de o adoecerem (repugnância, ânsia, “boca de um cardíaco”, sugerindo palpitações ou algo do tipo). O homem caminha em direção ao fim da existência. Em analogia à morte, vermes o espreitam. Em contraponto ao significado da vida, sua existência se apaga, sob a terra indiferente em que seus restos mortais repousam (“apenas os cabelos”). Melancólico, sombrio, na verdade, um grito existencial do homem que precisa significar o seu viver.
Uma curiosidade: seu soneto “Budismo moderno”, outro exemplo da alusão à composição orgânica da vida humana, recheado de citações da Biologia, foi musicado por Arnaldo Antunes:
Manuel Bandeira também tem a morte como tema recorrente de sua poesia. Há melancolia permeando seus poemas, como também há erotismo. Sobre a associação da morte com o erotismo na poesia de Bandeira, escrevi, há um tempo, um ensaio mais aprofundado para esta coluna, a partir do poema “A Dama Branca” (http://artecult.com/a-dama-branca-de-manuel-bandeira/).
Ao contrário de Augusto dos Anjos, embora a poesia de Bandeira seja “crua” e realista (ele é um poeta modernista), ele não soa mórbido. Envolve o tema em imagens emotivas, de beleza e, até, ironia. A morte, sempre iminente na vida real do poeta, é uma espécie de companheira de jornada. Observador das situações cotidianas da vida, sob um olhar, frequentemente, melancólico e pessimista, ainda assim, o que se extrai é a certeza de que se perde muito da vida se a passamos esperando pela morte quando, no fim, sua chegada é imprevisível.
Para uma nova leitura, escolhi outro poema sobre o tema na obra de Bandeira, chamado “O Homem e a Morte”:
O homem já estava deitado
Dentro da noite sem cor.
Ia adormecendo, e nisto
À porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
– Quem bate? Ele perguntou.
– Sou eu, alguém lhe responde.
– Eu quem? Torna. – A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nele os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
Se foi abrindo e deixou
Ver – uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
– Tu és a Morte? Pergunta.
E o Anjo torna: – A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
-Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror…
És mesmo a Morte? Ele insiste.
– Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe cerrou…
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor.
A morte bate à porte do homem. Agarrado a imagens pré-concebidas (“esqueleto armado de foice”), sua primeira reação é de medo: ele se recolhe à cama, gelado de pavor, numa tentativa vã de negar sua finitude. Inevitavelmente, a porta se abre, afinal, não se pode evitar a morte. E há a surpresa: a morte é um anjo, uma melhor amiga, tem o toque da mulher que o homem mais amara, um quê maternal (“o carinho inefável/de quem ao peito o criou”). Subverte-se a ideia da morte: é acolhimento (“Venho trazer-te descanso/do viver que te humilhou”). O homem se submete ao fim de boa vontade. Antes, refugiara-se da morte no leito; agora, refugia-se na própria morte, acolhido com carinho e doçura.
Bandeira não fala só da morte, mas fala da morte como ninguém. A sua franqueza, sua naturalidade, bem como a beleza das imagens que desenha permitem trazer o assunto, que ainda é tabu, para o foco de luz, num gesto natural e necessário.
Muitas vezes, transcedemos em vida. Independente de termos uma crença espiritual, procuramos e encontramos respostas na vida para nossas angústias. Pode ser a partir da observação do mundo, dos ciclos de vida da Natureza, ou de provocações artísticas e filosóficas. Certo é que a morte é angústia permanente e, por isso mesmo, tema sensível.
Seja expondo as entranhas do tema (literalmente), chocando e provocando reflexões urgentes, como no poema de Augusto dos Anjos, ou envolvendo em imagens de beleza e melancolia, como no poema de Bandeira, o inevitável encontro e as inevitáveis despedidas nos provocam a todos, poetas e homens comuns, a assumir um compromisso com a vida. É nas experiências de vida que repousam os significados. Não há morbidez na morte quando pensamos nela como o desfecho de uma boa história, o último capítulo de um livro. Uma boa história que só se escreve vivendo.
Quanta criancisse desses homens que pensam que são eternos! Pensam?