Quando um amigo me pediu para falar sobre interdependência, fiquei pensando nas conexões literárias que poderia fazer. Só um poema vinha a minha cabeça, fixamente: “Para repartir com todos”, de Thiago de Mello.
Thiago de Mello é um poeta amazonense dos mais respeitados, que possui um olhar social muito presente em sua poesia, que se debruça constantemente sobre a pobreza e encontra inspiração na população ribeirinha do rio Amazonas. Mas a sua voz política é amorosa, cheia de compaixão, e evidencia uma sensibilidade reflexiva acerca dos valores reais e da beleza da vida.
“Para repartir com todos” sempre foi um dos meus favoritos, não só pela ideia de necessária solidariedade humana como também pela de generosidade e de desapego. Mas, hoje, diante do pedido do amigo, meu inconsciente expandiu a minha percepção: mais do que de solidariedade, há no poema a ideia de interdependência, conceito mais forte que o anterior. Veja:
Com este canto te chamo,
porque dependo de ti.
Quero encontrar um diamante,
sei que ele existe e onde está.
Não me acanho de pedir
ajuda: sei que sozinho
nunca vou poder achar.
Mas desde logo advirto:
para repartir com todos.
Traz a ternura que escondes
machucada no teu peito.
Eu levo um resto de infância
que meu coração guardou.
Vamos precisar de fachos
para as veredas da noite,
que oculta e, às vezes, defende
o diamante
Vamos juntos.
Traz toda a luz que tiveres,
não te esqueças do arco-íris
que escondeste no porão.
Eu ponho a minha poronga,
de uso na selva, é uma luz
que se aconchega na sombra.
Não vale desanimar,
nem preferir os atalhos
sedutores que nos perdem,
para chegar mais depressa.
Vamos achar o diamante
para repartir com todos.
Mesmo com quem não quis vir
ajudar, pobre de sonho.
Com quem preferiu ficar
sozinho bordando de ouro
o seu umbigo engelhado.
Mesmo com quem se fez cego
ou se encolheu na vergonha
de aparecer procurando.
Com quem foi indiferente
e zombou das nossas mãos
infatigadas na busca.
Mas também com quem tem medo
do diamante e seu poder,
e até com quem desconfia
que ele exista mesmo.
E existe:
o diamante se constrói
quando o procuramos juntos
no meio da nossa vida
e cresce, límpido,cresce,
na intenção de repartir
o que chamamos de amor.
O poeta começa confessando sua dependência em relação ao outro que chama para ajudá-lo numa busca:
“Com este canto te chamo, porque dependo de ti.”
Enumera as qualidades e objetos que cada um possui e que precisam unir: um precisa levar a ternura ainda presente num coração machucado, o outro um resto de infância (supostamente, um coração esperançoso); um precisa levar toda a luz que tiver, até um arco-íris que esconde (luz etérea); o outro, uma poronga, uma lamparina que seringueiros amazonenses costumam usar na cabeça (luz real). Juntos, somam forças, enchem de luminosidade a escuridão para seguirem na direção do diamante que pretendem repartir no fim.
Interessante notar que, primeiro, o narrador anuncia que sabe da real existência do diamante e que sabe onde encontrá-lo. Só após tecer a estratégia da busca e de anunciar a intenção de repartí-lo, ele diz que o diamante, na verdade, será construído. Ele só existirá se e quando o procurarmos juntos. O diamante crescerá quando houver a intenção de repartir um sentimento; no caso, o amor. O diamante não existe, portanto, como anunciado – ele é construído quando se somam essas relações.
Logicamente, o diamante é uma metáfora de riqueza. E, embora o poeta tenha escolhido um objeto real de alto valor monetário, percorrendo seus versos, facilmente percebemos que fala de uma riqueza que é abstrata, espiritual, conceitual. É o amor, pode ser o bem, pode ser o sonho que se quer realizar ou até o prazer de ter um companheiro de caminhada. Para “traduzir” o que seria o diamante, deixemos que os leitores façam suas escolhas pessoais. O que importa-nos dizer é que são os personagens dessa narrativa poética (o narrador e aquele a quem ele pede ajuda) os que iluminam os caminhos, que não seriam desbravados facilmente sem que se ajudassem mutuamente. Sabemos disso porque há vários elementos que nos sugerem uma espécie de aventura trabalhosa: são necessários fachos para atravessar as veredas da noite, um dos dois usará uma poronga, as mãos dos dois estarão fatigadas no fim do percurso etc. Mas, na aliança estabelecida, tudo acontecerá. Forças se somarão. Luzes desbravarão caminhos. Diamante será construído.
Os outros homens, que não embarcaram na procura, ficarão para trás. Sozinhos, são retratados na sua impotência: são pobres de sonho; são egoístas e bordam ouro em torno do próprio umbigo; têm vergonha da procura e fingem-se de cegos; são indiferentes; têm medo do poder do diamante. Sobre eles, o narrador pretende derramar sua compaixão e repartir o diamante. E explorando essa parte do poema, poderíamos desenvolver sobre muitos temas: generosidade, desapego, doação, justiça (social), distribuição de riquezas e por aí vai.
Mas, voltando à aliança que se estabelece entre o narrador e o seu interlocutor, voltemos ao início do meu texto para dizer que o poeta sabe que, mais do que solidários um com o outro, os homens são interdependentes. Sem que sigam juntos, não se encontrará o diamante:
“sei que sozinho, nunca vou poder achar”.
Sem as qualidades de um, não se destacam as potências do outro. Sem o frescor do coração de um, não se aplacam as feridas que o outro carrega. Sem a companhia do outro, de nada valerá ser visionário, enxergar adiante um diamante que a maioria nem sabe existir. A força de um só se reconhece ao lado da força do outro. E, somadas, elas criam num futuro uma riqueza tão grande, tão grande que pode até ser repartida.
Abrindo o plano dessa imagem, pode-se dizer que é na interação entre os homens, ou melhor, é na cooperação (!), na soma de suas habilidades e na união das visões de mundo que cada um carrega que a potência se faz. Mesmo um coração ferido tem força se somado a um esperançoso. Mesmo quem tem uma estratégia precisa de companhia para fazê-la acontecer. Mesmo quem ficou para trás, por vergonha ou medo, ao unir-se ao grupo, pode beneficiar-se do valor da conquista. Essa união gera milagres concretos: atinge-se a meta, constrói-se o futuro, geram-se frutos para o ambiente ou contexto social a que se pertence.
Por tudo isso, a ideia de interdependência pulou lá do fundinho do meu inconsciente quando o tema me foi apresentado. Porque é uma percepção lógica e inerente de que, como diz aquela canção antiga, somos “pessoas que precisam de pessoas”. Ou de que, como no ditado popular, “uma andorinha só não faz verão”. Não há grande conquista que se obtenha sozinho. Seja porque precisamos do outro para realizá-la, seja porque precisamos do outro para reconhecê-la.
Juntado-se conhecimentos, potências, vontades na direção de um objetivo comum, homens se tornam mais capazes, mais eficientes, mais eficazes. Mais poderosos. E talvez o “grande segredo” para a felicidade seja apenas percebermos que somos elementos de um contexto maior que nos engloba a todos. E que é preciso deixar o outro “entrar” porque é preciso unirem-se os sonhos, pensar-se, juntos, uma estratégia de sobrevivência nessa vida de desafios difíceis. Talvez entendermos isso nos traga a certeza, como ao poeta, de que um diamante existe – se não hoje ainda, construído mais à frente.