POEIRINHA CAÓTICA: É O QUE SOMOS.
“Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois
Pouco antes do ocidente se assombrar”.(Inverno[1])
A epígrafe acima é parte da letra da música Inverno, de Antônio Cícero e Adriana Calcanhotto. E no verso “que um dia o céu reuniu-se à terra”, temos uma alusão à uma mitologia grega muito arcaica. Refiro-me à origem dos deuses gregos primordiais, narrada pelo poeta Hesíodo[2], em seu poema atemporal: Teogonia[3].
Este poema é considerado um dos primeiros do ocidente e segundo o tradutor desta versão, na sua apresentação, comenta que
“é um poema em 1022 versos hexâmetros datílicos que descreve a origem e a genealogia dos deuses. Muito do que sabemos sobre os antigos mitos gregos é graças a esse poema, que pela narração em primeira pessoa do próprio poeta sistematiza e organiza as histórias da criação do mundo e do nascimento dos deuses (…).” (p. 4).
No poema, Hesíodo vai perguntar às Musas, que são filhas da deusa Memória, sobre quem é a divindade primeira, de onde tudo se originou. Eis a resposta das deusas entre os versos 110 e 130:
“Disso me narrem, Musas que têm morada olímpica, do princípio, e dizei qual deles primeiro nasceu.
Bem no início, Abismo nasceu; depois Terra largo-peito, de todos assento sempre estável, dos imortais que possuem o pico do Olimpo nevado, o Tártaro brumoso no recesso da terra largas-rotas e Eros, que é o mais belo entre os deuses imortais, o solta-membros, e de todos os deuses e todos os homens subjuga, no peito, espírito e decisão refletida.
De Abismo nasceram Escuridão e a negra Noite; de Noite, então, Éter e Dia nasceram, que gerou, grávida, após com Escuridão unir-se em amor.
Terra primeiro gerou, igual a ela, o estrelado Céu, a fim de encobri-la por inteiro, para ser, dos deuses venturosos, assento sempre estável.”
A escolha do tradutor, neste caso, para a palavra Χάος (transliterado aqui como Kháos), é Abismo, que em português, segundo o dicionário Cegalla[4], significa “lugar profundo, precipício, cavidade cujo fundo é desconhecido, dificuldades, problemas.”
Mas quando nós, sujeitos do século XXI, distantes cronologicamente vinte e nove séculos do poeta grego, ouvimos a palavra ‘caos’, no senso comum, somos automaticamente deslocados/transportados/levados a pensar em algo no sentido de desordem e confusão. Algo que fomos doutrinados sistematicamente a refutar e não aceitar. E temer.
Contudo, se pensarmos em nossa existência e em seus mais amplos aspectos, esta revela-se, em si, insondável. Há eventos e acontecimentos (bons e ruins), em nossas vidas, que são absolutamente insólitos. Mas é neste inusitado que temos outras tantas possibilidades de experiências – se nos permitirmos, não pela via do senso comum, mas pelo uso de nosso senso crítico e de um descolamento metafísico. É um exercício de pensamento por vezes exaustivo, mas que nos concede vislumbrar outros modos de ver, pensar, sentir e viver.
O Kháos que Hesíodo nos fala em seu poema é a ordem original, de onde tudo veio a ser, a partir da descendência dos demais deuses. É uma narrativa mitológica – palavra que vem do grego μϋθολογία e aqui transliterado mythología, que significa contar ou narrar algo.
E qual a relevância do poema, um recurso literário antiquíssimo na história de várias culturas e sociedades distintas[5]? Segundo o filósofo Jean-Pierre Vernant[6], especialista em Filosofia Antiga:
“(…) é pela voz dos poetas que o mundo dos deuses, em sua distância e sua estranheza, é apresentado aos humanos, em narrativas que põem em cena as potências do além revestindo-as de uma forma familiar, acessível à inteligência. Ouve-se o canto dos poetas, apoiado pela música de um instrumento, já não em particular, num quadro íntimo, mas em público, durante os banquetes, as festas oficiais, os grandes concursos e os jogos. A atividade literária, que prolonga e modifica, pelo recurso à escrita, uma tradição antiquíssima de poesia oral, ocupa um lugar central na vida social e espiritual da Grécia. Não se trata, para os ouvintes, de um simples divertimento pessoal, de um luxo reservado a uma elite erudita, mas de uma verdadeira instituição que serve de memória social, de instrumento de conservação e comunicação do saber, cujo papel é decisivo.” (p. 16)
De Abismo, tudo se principiou. O Kháos de Hesíodo descortina algo que o senso comum de nossa contemporaneidade quer sustentar como sendo inexpugnável: a certeza. Mas o que a espiral da descendência de Kháos nos lembra é que o que vem a ser não é uma reta, forma geométrica linear.
Desde a modernidade (século XVI), o homem luta e se debate dia e noite contra a incerteza, o insondável e o imponderável. Porém o que jaz de certo é que não há garantias. Há o indeterminado, desde nosso nascimento, até o último momento de vida biológica. Porque desde seu primeiro sopro de vida, o indivíduo depende de outro para lhe alimentar, vestir, calçar, educar, proteger… etc. E como afirma Freud, o homem é o sujeito da falta e da incompletude. Está em permanente condição de carência e ilusoriamente sempre em busca de algo para lhe inteirar e preencher esta lacuna.
Mas no imponderável há possiblidade de conjugarmos muitos verbos – sem a apreensão pelo devir, porque este é indeterminado e incerto e escapa à pseudo tentativa de controle.
Podemos conjugar, no presente, por exemplo amar, respeitar, viver, agir, pensar, estudar, ouvir… Esse imponderável é também plasmado de mudanças e aqui complemento o argumento com um trecho da coluna intitulada A nossa metade não humana, do escritor José Eduardo Agualusa[7]:
“Não sou hoje quem fui ontem, nem serei amanhã quem sou agora, porque o meu microbioma mudou, o meu corpo mudou, as minhas conexões e experiências mudaram. Além disso, a minha capacidade para apreender a realidade também vai mudando. Essa ideia parece-me mais libertadora do que assustadora. Em vez de nos agarrarmos a uma identidade fixa, imutável, seríamos mais felizes se fôssemos capazes de aceitar que a mudança é parte essencial do que significa ser humano – ser vivo. Assim como o microbioma, a identidade é um equilíbrio dinâmico, um jogo festivo entre diferentes formas de experimentar a vida. A identidade faz-se caminhando. Somos seres em mutação.”
Porque somos parte deste todo caótico principiado pelo Kháos. Somos fração mínima deste Todo ordenado, perfeito e harmônico, que sempre existiu e existirá. Somos assim essa poeirinha caótica, termo que nomeia este artigo. E diante de toda a imponderabilidade da vida, que possamos nos permitir seguir adiante, tateando neste insondável mundo caótico.
E para auxiliar o exercício de pensamento que propus anteriormente, deixo aqui alguns versos de uma linda canção, Balada do louco[8] dos Mutantes, para que você possa ouvi-la agora e se permitir conjugar o verbo da liberdade e quem sabe talvez da felicidade:
“Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é felizEu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou euSim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a pazMas louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz”
E lembremos de que a certeza não aceita o mistério e o insondável!
ZAL
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
HESÍODO. Teogonia. Tradução do grego de Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução Joana Angélica D’Ávila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
[1] Trecho da letra da música Inverno. Compositores: Adriana Calcanhotto / Antonio Cicero. Letra de Inverno © Sony/ATV Music Publishing LLC
[2] Hesíodo nasce por volta de 776 a.C na cidade de Cime, na região da Eólia – atual Turquia.
Morre na cidade de Ascra (ano desconhecido). É considerado um dos primeiros poetas do ocidente.
Estudiosos atribuem a ele e a Homero, com seus poemas Ilíada e Odisseia, a instituição dos costumes religiosos antigos, a partir de seus registros. Apenas três obras do poeta Hesíodo chegaram até nós: Teogonia; Trabalhos e dias; O escudo de Héracles.
[3] Para este artigo, usei a versão de tradução do Professor Christian Werner, da USP:
HESÍODO. Teogonia. Tradução do grego de Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
[4] CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. P. 18.
[5] Além dos poemas já mencionados de Hesíodo, temos também de Homero, outro poeta grego que viveu por volta do século IX ou VII(, a Ilíada e Odisseia. E temos a Epopeia da Criação, um poema de cerca de 3000 anos, escrito em acádio, da região da Mesopotâmia, que narra a origem dos deuses dos babilônios, a criação do mundo e a luta entre os deuses pela liderança deste panteão e também a origem do homem. Tem uma versão recente, traduzida pelo Professor Jacyntho Lins Brandão, da editora Autêntica.
[6] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução Joana Angélica D’Ávila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
[7] Publicada no Jornal O Globo, de 22 de fevereiro de 2025, no Segundo Caderno, p. 6.
[8] Compositores: Arnaldo Baptista / Rita Lee Jones De Carvalho / Roger Ranson
Letra de Balada do louco © Tratore, Warner Chappell Music, Inc.
Mais uma reflexão maravilhosa, Zal