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“Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar
Se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer
Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha
E oferece lugar pra dormir e comer
Amigo que é amigo não puxa tapete
Oferece pra gente o melhor que tem e que nem tem
Quando não tem, finge que tem
Faz o que pode e o seu coração reparte que nem pão”.(Música ‘Amigo é casa,
de Hermínio Belo de Carvalho[1])
Às vezes, ao longo da vida, passamos por eventos e experiências pessoais tão marcantes que somente com o tempo é possível decantar e entender melhor o que se passou. Apenas com o tempo conseguimos (?) depurar esses acontecimentos – para o bem ou para o mal.
Escrevo este artigo ainda com a alma banhada de muitas lembranças: dos bons, belos e inesquecíveis encontros do final do ano. Um momento do ano com grande relevância emocional, pessoal e cronológica – encerra-se um ano e outro se impõe. São ciclos de tempo que sugerem uma pausa reflexiva sobre o que foi e o que está vindo.
E por isso resolvi falar deste tema neste primeiro artigo de 2025 para a Artecult: AMIZADE.
Para que possamos ter no nosso horizonte de caminhada do ano que se inicia. As amizades autênticas são verdadeiramente o sustento de nossas existências. Os amigos são como uma constelação de estrelas que brilha no céu que habita em cada um de nós. Como se existissem para nos iluminar e nos guiar, quando carecemos. Ou simplesmente para caminhar conosco e nos fazer sorrir.
No grego antigo, idioma usado pela antiguidade clássica, temos três palavras para dizer amor/afeto/amizade: philia (amor fraternal); ágape (amor espiritual) e éros (amor que nos eleva). Fiquemos aqui com a philía. E eu lhes pergunto: o que cabe nela? Zelo, admiração, cuidado, proteção, defesa, preservação, escuta…Deixo as reticências para você, querida leitora e querido leitor, inserir o que mais você acha que é possível caber dentro deste sentimento tão enaltecedor.
A vida é mesmo uma tessitura do tecido vivo da vida humana: com encontros, desencontros e reencontros. É um ecossistema permeado de afetos. E há certos bons encontros que são tão potentes – como uma reação química, como um big bang – que não dá pra pôr em palavras. Basta sentir e deixar que nosso arquivo de memória preserve estas vivências. É como “um campo de força que pareceu surgir por acaso. E que nunca poderá ser reproduzido” (p. 24)[2]. Isto é sobre a força inexplicável que alguns encontros têm em nossas vidas – um aniversário, um final de semana com amigos, um casamento ou simplesmente uma tarde juntos. Jamais aquele encontro poderá ser repetido igualmente. E aí reside o chamamento que faço: para que nos permitamos, ao longo do ano que se inicia, estarmos mais próximos daquele ‘núcleo duro’ de amizades que gravita à nossa volta[3].
Digo isso porque acredito que o significado de cada vida feliz é a partilha de afetos através dessas amizades autênticas. É o que nutre nossa tessitura ou ainda como afirma o filósofo Ailton Krenak[4]: “se é para existir e sentir a felicidade, não precisa de mais nada. (…) E compartilhar amor e respeito mútuo. Assim são os povos originários”. (p. 42-4). Acho que precisamos ouvir este ensinamento ancestral da Filosofia dos Povos Originários.
O tema da amizade é pois tão antigo e ao mesmo tempo tão parte da nossa condição humana quanto é nossa capacidade de pensar ou falar. Está na gênese das relações e interações humanas. Desde nosso nascimento precisamos de um outro para nos cuidar e alimentar. Crescemos, aprendemos a andar, falar e se relacionar. É nesta ‘gaveta da memória’ que se inicia nosso repertório de amizades. Há aqueles que têm amigos de infância. Há aqueles que têm amigos de tempo mais recente, mas que são importantes e amados. Não importa o tempo cronológico da amizade. Importa a amizade em si!
Aristóteles, filósofo macedônico do século IV a.C., que foi mentor do imperador Alexandre, nos diz no Livro VIII de sua Ética a Nicômaco[5] que a amizade “trata-se de uma certa excelência, ou algo de estreitamente ligado à excelência; além disso, é do que mais necessário há para a vida. Pois ninguém há-de querer viver sem amigos, mesmo tendo todos os restantes bens. E até os ricos, os que têm posição e poder, têm uma necessidade extrema de amigos”. (1155a1)[6]. E um pouco mais adiante, na mesmo obra, Livro IX, o filósofo de Estagira arremata seu ponto de vista: “apenas dura aquela amizade que é fundada sobre as disposições do caráter e que existem pela amizade enquanto tal [e não em vista de um qualquer outro motivo]”. (1164a10).
Deixo aqui ainda um último conselho do filósofo Krenak[7]: “devemos buscar e cultivar lugares de encontro entre as pessoas que se esforçam em fortalecer o bem viver”. (p. 56).
Que ao longo de 2025 possamos praticar esses bons encontros e PARTILHAR COM aquelas e aqueles que fazem parte da constelação de estrelas que brilha no céu que habita em cada um de nós.
E ainda como sugestão de música para ficar ecoando a partir deste tema, recomendo que você escute a música Quem tem um amigo (tem tudo)[8] do Emicida, logo após concluir esta leitura:
“O amigo é um mago do meigo abraço (do meigo abraço)
É mega afago, abrigo em laço
Oásis nas piores fases, quando some o chão e as bases
Quando tudo vai pro espaço
É isso”
Dedico este artigo às minhas amigas e amigos por existirem por perto e serem essa constelação de luz na minha vida. Como é bom PARTILHAR COM vocês!
ZAL
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009. P. 174.
CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
MURAKAMI, Haruki. O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação. Tradução Eunice Suenaga. Rio de Janeiro: 2014.
KRENAK, Ailton. Um rio um pássaro. Tradução Yoshihiro Odo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023.
[1] Trecho da letra da música ‘Amigo é casa’.
Compositores: Gilberto Gil / Celso Fonseca
Letra de O Eterno Deus Mu Danca © Warner/chappell Edicoes Musicais Ltda, Gege Edicoes Musicais Ltda, Preta Music, Inc.
[2] Trecho de um diálogo entre duas personagens do livro: MURAKAMI, Haruki. O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação. Tradução Eunice Suenaga. Rio de Janeiro: Objetivo, 2014.
[3] Para quem gosta de música clássica, deixo uma dica, que uma das personagens do livro citado de Murakami, escuta ao longo de toda a trama. Além de ser um livro encantador, a música dá um contorno ainda mais exuberante: Les Années de pèlerinage, de Franz Liszt.
[4] IN: KRENAK, Ailton. Um rio um pássaro. Tradução Yoshihiro Odo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023.
[5] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009. P. 174.
[6] Nas obras dos clássicos da filosofia antiga, as obras são sempre mencionadas com uma numeração específica. É uma codificação internacional, para padronizar as referências.
[7] Na obra Um rio um passado, conforme referência bibliográfica ao final.
[8] Compositores: Leandro Roque De Oliveira / Wilson Das Neves
Letra de Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo) © Laboratorio Fantasma Producoes Ltda Me
Que bonito seu texto, como é bom ler você e ter sua amizade! Que sejamos esse abraço amigo sempre e que ele se espalhe por todos os cantos, levando Philia a quem mais precisa!
Muito obrigado, minha amiga! Por sua amizade e por seu carinho …
Sigamos em philia!!!
☺️