OS ESPAÇOS DA ARTE E A ARTE DOS ESPAÇOS SOCIAIS:  um ponto de vista subjetivo para um espaço criado – Parte IV

Os espaços da arte e a arte dos espaços sociais: um ponto de vista subjetivo para um espaço criado

Parte IV

                                                                                                                                                                                              Pensar é saber estabelecer relações.

Vladimir Safatle, filósofo chileno-brasileiro

Mercadoria e consumo de massa

Concluímos a terceira parte deste artigo procurando estabelecer uma ligação entre mercadoria e arte. E como entender esta relação, inseridos, ambos, no sistema de uma economia de mercado capitalista. Como, na indagação do professor Safatle, estabelecer uma relação de apropriação conceitual e de aplicação prática desta relação, com nossa vida?

Trabalho, ação social típica do que Marx e Engels chamavam de “proletário”, é, frequentemente, confundido com emprego e não são, ao menos filosófica e sociologicamente, a mesma coisa. Animais, como abelhas numa colméia, “trabalham” mecânica e instintivamente. Não há subjetividade nem sociabilidade consciente, como nas sociedades humanas. Leandro Konder (1936-2014), filósofo brasileiro, definia “trabalho” como sendo uma “atividade teleológica”, ou seja, uma atividade que se realiza para uma finalidade, no caso, a de produção de uma mercadoria, seja ela tangível, seja ela intangível – esta, mais característica de nossa época do que da de Marx e Gramsci. Para superar o estado de letargia e alienação laboral, Marx e Engels propuseram o conceito de “práxis” que, se em Aristóteles era mais uma ação prática e concreta, em oposição à reflexão teórica, em Hegel e, especialmente, em Marx e em Engels, notadamente no tocante à luta por transformações sociais, assumiu o caráter de auto-superação, quando o ser humano poderia se redefinir, se recriar, pela ampliação dos horizontes de uma crítica social que não fosse meramente teórica, mas que passaria por uma crítica livre e autônoma, além de desalienante e que levasse a ações concretas de superação do status capitalista.

Refletindo sobre as ideias de Marx, Engels e Kurz, é legítimo dizer que o montante de capital que antes (séculos XIX e XX) era investido na (re)produção da mão-de-obra do trabalhador, agora ou, mais especificamente, desde o último quartel do século XX, passou a ser investido para fazer girar a grande roda financeira do capital, de onde se tem extraído lucros cada vez maiores, apropriados por parcelas cada vez menores da população mundial. É o que chamamos de “Neocapitalismo Fluxional”, onde a nova classe dirigente e detentora de capital ainda é senhora dos meios de produção material de mercadorias, sim. Entretanto, detém mais do que isso: manipula sobretudo o controle dos fluxos sociais (redes de informação, mercado de ações, fundos públicos, circulação de serviços do Terciário Superior etc.). Não raro, essa nova classe se preocupa apenas com o controle desses fluxos, como é o caso dos rentistas e dos especuladores. É o que Milton Santos chamava de “Homem Lento / Veloz”. Santos dizia que aqueles que não estão preparados para processar, rápida e adequadamente as informações sociais circulantes, que impregna até mesmo os territórios (mais-valia espacial), ficam de fora das benesses do progresso humano. A mais-valia passou a ser fluxional ou imaterial, embora não exclua a mais-valia material real ou tradicional. A mais-valia contemporânea vem, em grande parte, de dados produzidos, da informação processada e do conhecimento construído.

Ignácio Ramounet, sociólogo e jornalista francês, perguntou, certa vez, como a informação é ocultada, nos dias de hoje e ele mesmo respondeu afirmando que é pelo aumento, puro e simples, da quantidade de informações circulantes, o que não nos dá muito tempo para refletirmos sobre que nos está sendo imposto, goela abaixo, pelas mídias, tática sobejamente usada pelos amantes das fake news (notícias falsas, mentirosas) da extrema direita fascista. Como não conseguimos mesmo saber o que é relevante para nós, vamos “tocando o barco” como dá, deixando que alguém pense e aja por nós e, quando isso acontece, não nos damos conta de que esse pensamento e essa ação não são, exatamente, aquilo que gostaríamos de que fosse pensado e executado. Perdemos, assim, nosso senso crítico e nossa possibilidade de ação transformadora de mundo, fenômeno apontado por Paulo Freire (1921-1997), notadamente, em seu livro clássico “Pedagogia do Oprimido”.

O ser consciente, o indivíduo, não é uma ilha solitária: ele vive em sociedade e há regras coletivas e códigos sociais que devem ser entendidos, apropriados, assimilados, retrabalhados, refuncionalizados e refeitos. Os espaços sociais, como o Geográfico, são resultado direto, dentre outros fatores, dessas ações e as estéticas espaciais desse Espaço Geográfico exprimem o modo como construímos, culturalmente, nos organizamos e vivemos nos espaços sociais de vivências múltiplas e exponencialmente complexas.

 

O Espaço Geográfico como um objeto artístico construído

Bom, talvez você, leitor(a), esteja se perguntando: certo, mas onde entra a arte nessa história toda? E como ligá-la ao Espaço Geográfico?

Palavras como estética, harmonia e equilíbrio, dentre outras, estão sempre presentes quando nos referimos a um objeto artístico, mas também aparecem em outros momentos, aplicados a outros conceitos, quando falamos do Espaço Geográfico, por exemplo. Sendo um e outro, quer dizer, o objeto artístico e o Espaço Geográfico, criações humanas e, de algum modo, expressões do próprio ser, sendo o primeiro individual, embora impregnado da cultura na qual seu criador nasceu e viveu, e o segundo, um ente coletivo, podemos apreender o Espaço Geográfico, nos limites do raciocínio que aqui expomos, como um “objeto imaterial artístico”, que abriga, em sua materialidade, vários outros objetos artísticos, como um belo museu, que pode ser, por si mesmo, uma obra de arte arquitetônica, caso do Museu de Arte Moderna (MAM), no Brasil, ou do Hermitage, em São Petersburgo (antiga Leningrado), na Rússia (antiga União Soviética) e pode conter outros vários objetos artísticos ou como um quadro de Van Gogh ou uma múmia egípcia.

Esses (e outros) são espaços e objetos de arte, os quais, proporcionando prazer ao ser, ajudam a compor e a entender o ser e a vida e, porque não, ajudam, também, na concepção artística de vários de nossos espaços existenciais, tanto os individuais, nossas casas, por exemplo, quanto os coletivos, como o Espaço Geográfico.

Arte é vida porque somos nós mesmos, externados e eternizados, pelo hedonismo, muitas vezes despretensioso e, idealmente, carinhoso, da sensibilidade de nossos artistas ou mesmo por seu epicurismo. A arte retém, em suas várias formas, o que somos, enquanto sociedade e como indivíduos pensantes e, mais do isso, sensíveis. Pouco importa: arte é, do ponto de vista ora externado, um projeção do ser, em direção ao seu próprio projeto de autoconstituição e de posicionamento no mundo. O, heideggeriano, “ser aí, no mundo”, também pode ser um “ser aqui, em si mesmo” (embora projecional, senão confundir-se-ia com o “ser-em-Si” Sartreano) e a arte, sua mais profunda e arraigada expressão. A arte, ainda que aquela gestada e gerenciada por sistemas econômicos como o capitalista, que a aliena e, no liminten nos aliena junto, qualquer que seja a forma por ela assumida, é o ser; o ser, é arte; somos o nosso espaço e o construímos, de modo concreto e simbólico, dele extraindo deleite e fruição, pelo saber e pelas emoções que aplicamos à vida humana.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br

@galvao8148

 

 

 

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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