OS ESPAÇOS DA ARTE E A ARTE DOS ESPAÇOS SOCIAIS:  um ponto de vista subjetivo para um espaço criado – Parte II

Os espaços da arte e a arte dos espaços sociais:  um ponto de vista subjetivo para um espaço criado

Parte II

 

                                                                                                                                                                  O mercado não é uma invenção do capitalismo…                                                                                                                                                                                                    É uma invenção da civilização.                                                                                                                                                                                                   Mikhail Gorbachev (1931-2022)                                             Advogado e político russo, ex-Presidente da ex-União Soviética

 

Construindo espaços capitalistas de mercado

Dando sequência às ideias discutidas na primeira parte deste artigo, o Espaço Geográfico, na qualidade de um Espaço Social, é, sem dúvida, como correntemente é-lhe imputado, por assim dizer, uma construção social de espaço, ao longo dos tempos históricos e não de modo linear, senão dialético-cultural, posto que há vários momentos em que o passado é revisto à luz de novas descobertas. A História humana é fruto de interpretações e de fatos intercambiáveis e não de verdades dogmáticas e, portanto, inquestionáveis. Nossos espaços seguem o mesmo padrão.

Desde pelo menos as Revoluções Científica, do século XVII, e Industrial, do século XVIII aos dias atuais, em que se fala até em uma 4ª fase deste movimento histórico (que alguns chamam de período industrial 4.0, somado ao hipermoderno Tecnolfeudalismo), em concomitância às sucessivas mudanças políticas, como a Revolução Francesa, de fins do século XVIII e início do século XIX, as Revoluções Liberais de 1848 e os movimentos libertários que vieram a ter seu ponto mais alto com as revoluções progressistas do século XX, desde todos esses movimentos sociais, a construção do Espaço Geográfico vem obedecendo uma lógica senão puramente capitalista, ao menos com parâmetros bastante similares. Isso é tanto mais verdadeiro quanto mais nos aproximamos de fins do século XX e início deste século XXI, quando o mundo, praticamente todo ele, se rendeu à lógica da economia de mercado capitalista. Um dos graves erros de avaliação de boa parte das esquerdas mundiais foi combater o mercado, como se ele fosse sinônimo de capitalismo e isso é falso.

Mercado sempre existiu na História humana, como aponta a frase de Gorbatchov; nasceu bem antes do capitalismo existir como sistema econômico e provavelmente vai sobreviver ao pós-capitalismo, depois que ele morrer por implosão ou se, e quando, for assimilado por outra forma de organização econômico-social. Esta é uma conclusão possível a ser deduzida dos estudos do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), em seu livro clássico “O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II” e levou a sucessivas ações desencontradas para que formas alternativas de construção de espaços sociais, como o Geográfico, pudesse florescer. Construir espaços sociais não é tarefa trivial e muito depende da cultura e dos valores sociais que proliferam, em maior ou menor grau, nas hostes dos grupos sociais dominantes ou, como diria o filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937), hegemônicos (1985 e 1999), um dos maiores pensadores das esquerdas, desde Marx.

Antônio Gramsci

Sobre rosas e pântanos

Um livro (famoso, “E a Bíblia tinha razão”) foi escrito com o objetivo de provar que várias afirmações da Bíblia são corretas, mas uma blague complementava: “e a Bíblia tem razão, apesar do livro”. Não raro, parte-se de um pressuposto correto e, ou o sujeito assume como válidas, justificativas incorretas ou parciais, ou chega a conclusões, no mínimo, dúbias e/ou questionáveis.

Uma das características mais marcantes do capitalismo tem sido, historicamente, produzir ilhas de riqueza no meio de um oceano de pobreza; rosas no meio de um pântano lamacento. Atuações como a de pessoas como Musk só pioram a situação. O suprimento das carências nossas é realizado pelo consumo, ainda que o acesso à renda e às compras venha se reduzindo a passos largos. Temos que ter inteligência, individual e social, para compreendermos as regras desse jogo, desse grande cassino capitalista e a gramática de engendramento do seu sentido, ou seja, a sua ideologia. Sem isso, continuaremos enxugando gelo ou, tal como cachorro louco, correndo atrás do próprio rabo. Consumimos por consumir e não para suprir uma necessidade ou mesmo para ter apenas prazer, que tem vindo, ainda que nem todos se dêem conta disso, do consumo em si e não da necessidade atendida ou do gosto pelo objeto consumido; de meio, tornamos o consumo um fim em si mesmo, é o consumo hedonista (busca pelo prazer imediato e desmensurado) e teleológico (o fim vale por si mesmo, sem um sentido maior) da atualidade.

O pensamento pós-moderno, por não acreditar em macro soluções nem em ideias como um futuro obrigatoriamente radiante, transformando-o num presente diariamente renascente, parece ter condenado a História a um quase ostracismo, dando lugar a ideias estapafúrdias como o fim dessa mesma História. Em oposição ou em complemento (depende do ponto de vista do interlocutor) à pós-modernidade, os filósofos Lipovetsky e Charles propuseram a “Hipermodernidade”. Esta última seria algo como um aprofundamento da pós-modernidade pelo exagero de ideias e de ações sociais. Viveríamos, na hipermodernidade, a Era do Exagero: hipertexto; hiperconsumo; hiperguerras; hipermiséria etc. Mas a hipermodernidade guardaria, da pós modernidade, para os autores, a mesma amargura presente pela falta de perspectiva de um futuro melhor e a mesma crença, no meu entender, perigosa, quanto ao poder supremo da razão como “resolvedora” de todos os problemas da humanidade (2004). Hiper são também as metrópoles e as megalópoles, cada vez mais tentaculares e opressoras; hiper é o mercado de  consumo capitalista, onde todos querem consumir tudo, mas onde poucos, e cada vez menos, o conseguem. A abundância e a escassez, ladeadas, são também hipermodernas. Modernidade, pós-modernidade ou hipermodernidade? Façam suas apostas!

Estado e mercado nas ações sociais

Gramsci partia da ideia de que as classes, tal como as entendiam Marx, seriam as forças materiais que controlariam a sociedade e, ao mesmo tempo, constituiriam-se em sua “força intelectual” dominante. À concepção marxista de classes sociais, com algumas falhas sem dúvida, mas ainda hoje bastante atual e inteligente, Gramsci acrescentou o conceito de Hegemonia, que expressa o consentimento das classes subalternas à dominação burguesa e à reprodução de sua ideologia. Essa hegemonia, segundo Gramsci, se expressa pela fração dominante dentro da Sociedade Civil, que exerceria o controle pelo intermédio de suas lideranças morais e intelectuais e, por isso, articulariam os interesses das frações sociais dominadas (1985 e 1999). Os interesses da burguesia moldariam os interesses da classe proletária o que significa dizer que a hegemonia capitalista, além de política e ideológica, seria (é) também (e sobretudo) econômica, ainda que o discurso de alguns seja o de que questões econômicas e/ou contábeis e/ou administrativas são “a-ideológicas” e, portanto, seriam assuntos técnicos, não passíveis de serem alterados pela política, no mais das vezes, criminalizada, maldosamente, pelos detentores do grande capital e seus porta-vozes na grande mídia corporativa, quando não pelos próprios políticos, não todos, claro, mas por aqueles a quem interessa a pasteurização aqui mencionada, para continuarem a se locupletar; ou seja, não de modo desinteressado.

A disputa pela hegemonia seria a luta de classes por excelência, no entender de Gramsci, e essa luta era, como ainda é, em grande medida, travada pela disputa do aparato jurídico-político do que a literatura social denomina de Estado. O jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973), por exemplo, dizia que “o Estado é a lei” e com sua Teoria Pura do Direito, limitava o Direito às normas técnicas, ou leis, sem interpretações sociológicas e/ou humanísticas; era, diríamos, algo como a oposição filosófica de Immanuel Kant (1724-1804) entre o “ser” (o que é) e o “dever ser” (em que um significado é extraído da existência do ser). O Direito, para Kelsen, não seria, pois, política jurídica, mas algo como uma “ciência pura do Direito”.

Nesta perspectiva, entre o “ser” e o “dever ser”, a briga pela hegemonia estatal é a luta pelo controle dos fundos públicos (investimentos sociais em infraestrutura; serviços públicos diversos; sistema previdenciário etc.). Essa dominação e essa apropriação privada das forças públicas por parte da classe dominante, detentora do grande capital, daí ser conhecida como “capitalista” (lembrando que capital não é dinheiro, não só, é uma relação social de produção) é feita, pois, em grande parte, pelos mecanismos ideológicos e administrativos do Estado e da sociedade civil organizada ou, em termos gramscianos, orgânica. Para superar esse quadro de tensão hegemônica e sobreposição da maioria pela minoria com acesso a esses fundos públicos, dizia Gramsci, só mesmo criando uma contra-hegemonia, vinda da base.

Várias tentativas de pensar, propor e realizar caminhos alternativos, mesmo de grande parte da esquerda tradicional, nos mostra que não é fácil fugir da armadilha de ideias pré-concebidas e ações padronizadas. A razão iluminista e utilitarista teve o seu papel, mas não tem condições de responder às demandas complexas deste nosso século XXI. Da Revolução Científica do século XVII que nos fez aumentar a capacidade de domínio na Natureza e da razão iluminista, dela decorrente e, ainda, da crença em nossa capacidade tecnológica de intervenção ambiental e na produção infindável de bens e serviços, nasceu o sistema econômico conhecido por Capitalismo, cuja lógica cartorial e patrimonialista baseia-se na sociedade de consumo, cada vez mais ambientalmente depredatória, excludente politicamente e desenfreada economicamente, já que a fome e o desemprego, ambos crescentes, por exemplo, em várias profissões e lugares, se torna estrutural e a renda e o lucro podem ser auferidos a partir de meios abstratos, como o sistema financeiro e não mais (apenas, nem prioritariamente, talvez) concretos, como o chão da fábrica. O conjunto de seres hmanos não cabe nos padrões escravocratas e desenfreados do capitalismo (selvagem).

O Estado Moderno, estruturalmente, é, assim, uma instituição que está ligada ao processo capitalista, de modo que se tornou quase impossível que tomasse outra forma que não a de mero executor da reprodução ampliada do capital. Mesmo onde esse Estado assumiu, teoricamente, formas diferenciadas, como no antigo mundo comunista-estalinista (depois, totalitário) ou no Estado do Bem Estar Social (embora esse último tenha sido, dentre as experiências que tivemos, em níveis mundiais, talvez a que tenha sido a mais bem sucedida de justiça social, ou a menor pior, como se pode dizer, no popular, de 1945 aos anos 1970 e depois do neoliberalismo até 2008, com a crise financeira do capitalismo), ele esteve à serviço dos grupos sociais que o têm hegemonizado desde o nascedouro. A vida e seus espaços são (re)construídos dia-a-dia, tijolo a tijolo, concreta e simbolicamente.

E onde essa ideia toda sobre capitalismo e espaço nos liga à arte? Veremos na terceira parte deste artigo.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br

@galvao8148

 

 

 

 

Bibliografia

  • GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999
  • GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do Livro, 1985
  • LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004

 

Author

Carlos Fernando Gomes Galvão de Queirós é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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