
Os espaços da arte e a arte dos espaços sociais: um ponto de vista subjetivo para um espaço criado
Parte I
Quem faz o espaço é a acolhida.
Ditado Russo
Arte e Espaço como transcendências subjetivas
A palavra “arte” ver do latim “ars” e do grego antigo “aisthesis” e que dizer “técnica e/ou habilidade” de se fazer alguma coisa. Entretanto, não é uma coisa qualquer. Então, que coisa é essa? Em geral e no senso comum, arte é um resultado possível das atividades humanas ligadas às manifestações de ordem estética e, portanto, sensitiva (e não apenas visual, como usualmente se pensa), a começar da compreensão de Immanuel Kant (1724-1804) sobre o estético, ou seja, que é estético tudo aquilo que é belo e dá prazer ao ser. Não necessariamente o prazer dos Hedonistas, no sentido da busca pelos regojizos imediatos da vida, embora não os exclua, mas um prazer, também, de caráter mais… metafísico e existencial, por assim dizer, não esquecendo do espiritual. Deste ponto de vista, Kant, se é que podemos fazer tal ilação, se aproximava mais dos Epicuristas, os quais buscavam, também eles, o prazer. Contudo, basicamente, a busca dos epicuristas era pelos prazeres que chamavam de superiores, ou seja, para eles, haveria certa hierarquia do prazer humano. Certamente, um objeto artístico, por este prisma, não é uma criação Estóica. Os estóicos buscavam a “elevação” humana e espiritual pela renúncia dos desejos mundamos que seriam, nesta perspectiva, a fonte de nossas tristezas, frustrações e infelicidades.

Pintura “Paisagem” de Nil Camargo
Não obstante, o que frustra mais: o prazer não atingido, mas cuja busca pode ter proporcionado alguma satisfação pelo simples fato de retirar o ser de um estado de inércia vital e de catatonismo emotivo (catatonia é uma forma de esquizofrenia em que a pessoa apresenta alternância entre períodos de passividade e de negativismo e períodos de súbita excitação e agitação, até mesmo, certa agressividade) ou o sentimento de estagnação senso-perceptiva, cognitiva e emotiva, por nunca se ter buscado aquilo que se considera prazeroso? Sim, é verdade, um estóico talvez respondesse que a simplicidade de uma vida pacata e em pleno acordo com (supostas) leis eternas da natureza, criadas pelo ser divino, ilumina o ser terreno e tudo o que lhe é externo deve ser abandonado, pois só assim este mundo tornar-se-ia um Cosmos (do grego “harmonia”). Na filosofia oriental-hinduísta, por exemplo, temos a ideia de “Maya”, tida como uma grande ilusão reveladora de Brahman, a divindade criadora do Universo (Cosmos), que seria seu aspecto material e visível, ao contrário de “Atman” (alma), que seria o sopro do divino no ser humano (Rodhen, 2008). Não vou aqui afirmar que tal cosmogonia é incorreta; não tenho elementos para tanto. Contudo, desconfio de que talvez faltem umas tantas informações, também elas, relevantes nesta história.
Sem dúvida, a busca pela simplicidade do ser autoconsciente e receptivo em relação às coisas universais é importante; toda consciência, segundo as teorias Existencialistas, é “consciência de alguma coisa”, de um objeto que ela não é, e que tende para o mundo, para além de si mesma, como consciência consciente e sensitiva, como afirmava, por exemplo, o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), em seu livro sobre o ser e o nada (1997). Se não houvesse essa percepção, simplesmente não haveria consciência, não haveria o “ser aí, no mundo”, do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), quando escreveu sobre o ser e o tempo (2004). Aliás, essa transcendência do ser em relação ao mundo é uma noção importantíssima para que possamos entender os dois conceitos centrais deste artigo: arte e espaço, apenas aparentemente desconexos, para quem assim os considera.

Foto: DINO / DINO
Dentre os espaços sociais, conceitualmente à nossa disposição, focarei minha atenção no Espaço Geográfico. Este último, uma criação conceitual humana, possui ao menos duas dimensões: a primeira é a matemática ou geométrica, que é aquela observada nos mapas; é a dimensão cartografável do Espaço Geográfico, de base cartesiana e kantiana. A segunda é a dimensão existencial, não o contrário da geométrica, mas sua contraparte.

O mapa do Brasil acima nos mostra as diferentes vegetações do país.
Para Kant, tempo e espaço seriam conceitos a priori do ser humano, quer dizer, seriam categorias naturais com as quais o Homem teria que lidar: o tempo seria o passar dos instantes e o espaço, uma espécie de “recipiente”, com seus elementos naturais, com os quais interagiria e sobre os quais disporia suas criações. É uma definição boa, mas insuficiente para os conhecimentos que já construímos após a morte de Kant (no início do século 19). Uma bolsa em cima de uma mesa é um objeto que, se disséssemos para alguém, que está ocupando um lugar no espaço, não haveria discordâncias; se pedíssemos para que essa mesma pessoa pegasse a bolsa, ela o faria, com facilidade. Porém, e se pedíssemos para que essa pessoa pegasse o espaço que a bolsa estava ocupando? O que ela diria, depois de fazer uma cara espantada, pela impossibilidade material de atender ao pedido? Espaço é, numa visão mais heideggeriana e sartreana, mais Existencialista, uma relação de troca e de senso-percepção, para além de uma espécie de objeto previamente dado, mensurável e palpável.
A artista plástica Fayga (1920-2001) mostrou a beleza da relação ser-espaço, ao afirmar que nós não apenas vivemos no espaço, mas somos o próprio espaço, como lindamente descreveu no livro “Universos da Arte” (1983). Prolongando este raciocínio, para ratificá-lo, podemos indagar o que você, querida leitora, prezado leitor, diria sobre uma pessoa que sabe muito sobre alguma coisa. Talvez você diga que tal sábio tem um conhecimento “profundo” ou, mais coloquialmente, que “está por dentro”; ao contrário, você pode dizer que tudo o que o pseudo-sábio falou foi de uma “superficialidade” a toda prova e que, neste caso, ele “está por fora” do assunto. Ora, profundo; está por dentro; superficialidade; está por fora, são, todas elas, referências linguísticas que mostram como, mesmo do ponto de vista de posicionamento no mundo ou físico ou metafísico ou… enfim, mostra como a autora estava certa ao amalgamar ser e espaço.
O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) falava, pouco antes de morrer, sobre uma “Geografia do corpo humano”, posto o fato de que não haveria sentido falarmos em Espaço Geográfico sem aquele que o organiza e o marca com suas “digitais”, por assim dizer, sejam elas manuais ou culturais. Pelo até aqui exposto, a busca por espaços sociais, como o geográfico, é, sob o ponto de vista adotado (há outros, é claro, e tão legítimos quanto o meu), em boa medida, uma busca por nós mesmos, e não apenas para a construção de sociedades historicamente consistentes e geograficamente posicionadas, mas também e, diria mesmo, sobretudo, uma busca pelo que há de mais valioso para cada um de nós: nós mesmos! Essa não é, de modo algum, uma busca egoísta (ou não deveria ser), posto o fato de que não há, como já é até lugar comum, um “eu”, sem um “tu” e nenhum dos dois vive bem e/ou com justiça sem que o outro esteja satisfeito. Mas buscar um espaço social é, no fundo, o resultado coletivo da própria constituição social do ser, em seus posicionamentos conscientes perante o mundo e seu grupo e deste em si mesmo e na forja dos seus espaços de vivência. Captando a materialidade ou constituindo-a, ao externar-se, o ser constrói a si mesmo ao construir um mundo para si; como contraparte existencial, ao construir o seu mundo, o ser se (re)constrói.

Fotografia do satélite. INPE/CPTEC/DSA.
Esse processo exige ações humanas em várias dimensões. Ao buscar um objeto que seja universalmente partilhado e que dê prazer, independente de eventuais hierarquias, o ser cria no mundo não um artefato puro e simples, mas sobretudo cria uma forma de mostrar aos outros seres o que há de mais bonito e afetuoso em si mesmo. Comunicar-se é mais do que transmitir informações, é se fazer entender e essa é, na perspectiva ora exposta, a própria essência de um objeto artístico. Arte é, pois, no meu entender, talvez não apenas, mas bastante, tudo aquilo que o ser cria para expressar seus sentimentos e percepções de mundo, tanto idealista quanto materialistamente falando. Ou seja, induzindo ou deduzindo, a arte constrói o ser, tanto quanto este ser constrói a arte. Nosso (carinhosamente conhecido como) “poetinha”, Vinicius de Moraes (19130-1980), já disse que “o operário faz a coisa e a coisa faz o operário” no poema “Operário em Construção”. Com isso, comunicando-se com os outros seres, o ser cria um entrelaçamento de sentimentos, percepções e reflexões acerca do mundo e da vida e são esses os fatores que os leva a fazer nascer, através da arte, ou seja, de certa perspectiva, através do próprio ser, os espaços de vivências e de existência sociais, os quais, uma vez organizados, culturalmente, para cada modo de vida, de cada sociedade, em sua materialidade, fazem nascer no mundo o tipo de espaço social que bem podemos chamar de geográfico. E como construímos nossos espaços, a partir do modo operacional vigente, na maior parte do mundo, que é o capitalista? Conversaremos sobre isso na segunda parte deste artigo.

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br
Bibliografia
- HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Volumes I e II. Coleção Pensamento Humano. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2004
- OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campus, 1983
- RODHEN, Huberto. O espírito da filosofia oriental. São Paulo: Martin Claret, 2008
- SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997









