O único terremoto que abalou essa terra chamada Eu
O que me recordo é triste. É a cena de um casal que se desentendeu, mas está indo cumprir uma obrigação social. Possivelmente era um aniversário ou noivado de dois alguéns ainda pouco brigados, pouco importa. A cena que bate e ricocheteia é a perseguição policial gerada nessa discussão. Pela raiva em palavras um casal se põe em continentes diferentes. Ele dando tapas nas coxas, bufadas que não esvaziam os pulmões. Ela apertando os dedos no volante, pisando no pedal de acelerar como se pisasse no pescoço do marido.
O bucólico de cores acesas que habita o lado de fora apenas sente o Toyota cinza cada vez mais veloz na estrada. Já haviam avançado sinais não só com o veículo, também com os desrespeitos das vozes. Verbos pessimamente escolhidos como se banco de motorista e banco do carona fossem um ringue cuja luta só se encerra com a morte de um dos oponentes. Cada grito quase trincava os vidros das janelas fechadas para sustentar o ar-condicionado. A polícia acena com sirene. Acena com a presença assustadora em todos os retrovisores. Me recordo o envenenamento do insucesso que é quase ser algemado quando eu dizia para me arrancarem as algemas. Ele, no caso eu, dizia que não aguentava mais. Ela me mandava à merda.
Talvez os policiais tenham buscado na farda entre o bolsos sujos de estupidez alguma piedade masculina. Fingiram aplicar multa, deram conselho quase matrimonial e nos mandaram seguir. Um dos policiais, ouvi bem de longe, disse ao outro que às vezes para um casal pode ser tarde demais pedir desculpas. Mais dez ou vinte minutos de silêncio em pensamentos que de tão violentos faziam tremer os corpos, as suspensões do carro, as goiabeiras daquele canto de Rio Bonito, as soleiras dos casebres, das biroscas, das barracas de bananas, das poucas pessoas noturnas que caminhavam ou esperavam ônibus demorados até que uma árvore e um poste de madeira se confrontam e batem no capô que nos levava ao nada, que é o que consigo recordar abrindo os olhos no hospital, que é o mesmo nada que sinto ter me invadido desde então.
As televisões dos dias que se amontoaram contavam incrédulas do primeiro terremoto que essa terra já viu. Nunca se deu assim antes. Sismólogos diziam que dificilmente aconteceria algo semelhante de novo. Tirando a péssima lembrança daqueles fins, os começos e os durantes são auroras. A gente era do tipo que ria de verdade, chorava de honestidade e criava sonhos a cada sexta-feira ou segunda-feira. Nunca nos abalamos por nada que fosse tão desimportante como o que faríamos com os juros da fatura atrasada por desatenção. Brigamos porque ela mentiu sobre não se importar com a minha falta de ambição profissional. Daí confessei também ter mentido não ter me importado de não ter aceitado a oportunidade de trabalho fora do país. A flor ruim desabrochou naquele raro abismo de falta de diálogo sincero. Nada que atestasse o fim de nós. Nada impedia que ficássemos juntos, ainda mais fortes, desculpados, reorganizados em cada órgão que fica do coração ao fígado. Mas a vida é feita de contudos e poréns. Aquele foi o único terremoto que abalou essa terra chamada eu.
Hoje só, não sei se vivo. É um luto pela última vez que vi Amanda sorrir, cerca de um mês antes. Porque a última vez que a vi mesmo foi deixando escapar uma lágrima do olho direito no exato instante que o corpo cansa e o coração consegue uma trégua no meio de uma briga. Tenho a certeza de que ela pediria desculpa, de que eu pediria desculpa, de que combinaríamos novas regras de respeito e que seguiríamos para o nosso sempre ao invés do nada.
Mas ela morreu na hora.
Foi o que os bombeiros disseram. Só não disseram que ali eu também tinha morrido.
Imensamente bem escrito! Texto flui, deixando o leitor em suspense, tenso, suspenso no ar. Marcante e forte . Parabéns!
Belo texto. Emoções intensas, vívidas.