
Sabemos que quando vamos ao teatro, estamos a procura de entretenimento, no entanto, o teatro corrobora com a educação, que é fundamental na construção do ser. E exatamente por isso meu encantamento pelas artes cênicas.
Em 1946, a Constituição Brasileira, com a ajuda de Jorge Amado, estabeleceu a liberdade religiosa e o livre exercício dos cultos religiosos no país. Jorge Amado, enquanto deputado, redigiu uma emenda que garantia a liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, exceto aqueles que contrariassem a ordem pública ou os bons costumes. Essa emenda, que se tornou o § 7º do artigo 141 da Constituição, foi um marco na História do Brasil, consolidando o caráter laico do Estado.
Aprendi isso no teatro, se não me foge a memória, através do espetáculo “Na Casa do Rio Vermelho – O amor de Zélia e Jorge”, que contava a história do literário. Tenho devoção por ele, afinal ele é um dos maiores artistas que soube desenhar o Brasil como poucos. Perto da epifania em enxergar a realidade social do país.
Para esboçar em palavras o espetáculo infantil “Kawo” é preciso fazer essas referências mais robustas para chancelar a obra. Ao contrário dos demais espetáculos, a montagem não passou pela sabatina de costume, foi premiada antes de algumas críticas que apontasse olhares positivos sobre os quesitos cênicos e, por isso mesmo, nem preciso apontá-los nesse texto.
Sabemos que a obra iniciou as temporadas dentro da Favela da Maré, território conhecido pela violência, o que acomete aos críticos o receio quanto à segurança, já que o Estado não atua lá com maior empenho, há controvérsias, mas enfim, não é sobre isso que trago a obra a essa coluna.
Apenas justifico a ausência de críticos.
Após algumas temporadas dentro da comunidade, onde muitas crianças assistiram mais de uma vez, a montagem foi contemplada no Sesc Pulsar, circulando por outras cidades, participaram de festival de teatro e chegaram até São Paulo. E questiono, para que serve essa crítica?
Para falar sobre a importância do espetáculo permanecer seguindo nos palcos teatrais. É preciso educar para podermos respeitar. Nenhum artista busca só premiações, continuar trabalhando também é um dos objetivos e isso só acontece quando o espetáculo torna-se expressivo para o público.
Há uma tríplice cênica que garante à montagem uma vida longeva: público, artista e texto.
O texto que conecta os espectadores aos artistas é rico no saber. Quando menina, na mjnha grade escolar havia a aula de religião, o que deveria ser catolicismo, porque era essa a religião que aprendíamos naquelas aulas, não mais. Religiões de matriz africana, espiritismo, budismo, mitologia grega, nada disso era ensinado, e assim crescemos intolerantes religiosos. A palavra Exu, por exemplo, sempre foi visto por mim como uma peste, algo violador, até participar de um curso sobre contação de história com Sinara Rúbia e ter tido a oportunidade de ter lido o livro infantil “Exu e o Mentiroso”, do autor José Athayde o que favoreceu para desconstruir tudo que um dia me falaram e, assim, me tornei simpatizante do orixá.
Sinopse
Kawó – o rei chama apresenta uma África ancestral e imaginária e narra a preparação do “dia do Obá Xangô”. Uma família composta por uma mãe, quatro filhos e um avô passam o dia desde seu alvorecer preparando a festividade. Tudo sob o comando dessa grande matriarca, os seis trabalham para que tudo seja perfeito para celebrar a memória do rei, esse ancestral tão admirado por todos eles. Enquanto cozinham e decoram o quintal para festa da fogueira que será no fim do dia, a família relembra as narrativas que compõem a trajetória que levaram o Xangô menino se tornar um dos mais respeitados e cultuados orixás.
Confesso que não sabia que os orixás, assim como os santos católicos, supostamente passaram por essa vida como humanos, a diferença é que romantizaram as histórias católicas, parece terem esquecido que Santo Paulo, por exemplo, um dia perseguiu e matou cristãos, inclusive ele chamava-se Saulo, se não me engano. Ele era o terror dos cristãos antes da sua conversão.
O texto da peça traz a história de Xangô, contando sua origem, sobre seus pais, irmão e seus amores. Uma história como outra qualquer, não é uma sessão de umbanda e nem tem a missão de converter alguém. Uma história que não demoniza, como um dia fizeram comigo.
Precisamos abrir essa contação de história e, para quem ainda não assistiu, posso dizer que percebi uma plateia conectada, atenta. Sempre que um crítico está no Teatro, ele observa a reação do público alvo, mas fiquei impactada foi com o público que acompanha os filhos, e pasmem, as pessoas pareciam não piscar. Logo entendi, que o conhecimento que os artistas nos trouxeram, hoje é bem-vindo, ou seja, temos sede do que um dia nos negaram.
Em uma das apresentações no teatro Municipal Ziembinski, onde estão em temporada, uma escola particular ocupou o teatro inteiro, uma escola da Zona Sul, que parabenizo, isso sim chama-se educação, cumprimento da lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Essa lei torna obrigatório o ensino sobre história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas de educação básica. Parabenizo principalmente pelo olhar que a escola tem para o futuro, um olhar para um país mais diverso.
E para fechar, preciso falar dos artistas. Há jogo cênico no palco, onde os artistas interpretam Xangô em fases diferentes da vida e outros orixás. Aliás, no ato final, Xangô sobe em uma estrutura criada pelo cenógrafo Cachalote, e ao assoprar um pó, apresenta uma cena belíssima com a ajuda da iluminação.
Ivan de Oliveira, Gabriela Luiz, João Mabial, Michael Alves, Rodrigo Lontra e Victor Braga surpreendem. Entre eles Rodrigo Lontra, quando faz a performance de Exu, transborda a característica do orixá. Já Michael Alves porta uma comicidade que é visivelmente genuína.
Gabriela Luiz, avança, além de diretora de movimento ao lado da diretora Fernanda Dias, assume no palco Oxum e Iemanjá. Em Iemanjá, ela oferece ao público um belo canto, que terminantemente nos leva a um transe, tudo belíssimo.
E em outro ato, sobe na mesma estrutura mencionada e dança sobre ela, além de equilibrar-se.
Diante dos ditos, a obra do Gabriel Mendes é um presente para o futuro, para um país mais honestamente laico, por ser contada com beleza e cuidado.
Ficha técnica
Direção Artística Geral, idealização e dramaturgia : Gabriel Mendes
Assistência de Direção: Rodrigo Lontra
Idealização e Dramaturgia: Gabriel Mendes
Elenco: Ivan de Oliveira, Gabriela Luiz. João Mabial, Michael Alves, Rodrigo Lontra e Victor Braga
Músicos: Kaio Ventura e Raquel Terra
Stand-ins: Thiago Manzotti (ator) e Lucas da Lapa (músico)
Cenografia: Cachalote Mattos
Figurinos e Adereços: Valério Bandeira
Iluminação: Raphael Grampola
Direção Musical: Raquel Terra
Composições: Kadú Monteiro e Raquel Terra
Direção de Movimento e Preparação corporal: Fernanda Dias e Michael Alves
Coreografias: Gabriela Luiz e Michael Alves
Direção de Produção: Cachalote Mattos, Gabriel Mendes e Rodrigo Lontra
Assistência de Produção: Felipe Oliveira e Stallone Abrantes
Fotografia: Renato Mangolin
Programação Visual: Breno Loeser e Ricardo Rocha
Gestão de Mídias: VB Digital.
Consultoria de Acessibilidade: Stallone Abrantes
Intérprete de LIBRAS: Sheila Martins
Costuras: Claudio Policarpo e Norma Farias Mendes
Montagem: Felipe e Leandro Mattos
Cenotecnia: Moisés Cupertino
Técnico de Som: Leandro Mattos
Realização: 2NÓS e ONÀ PRODUÇÕES.
SERVIÇO
O espetáculo “Kawó – o rei chama” está em cartaz no Teatro Municipal Ziembinski, na Tijuca, Rio de Janeiro, com sessões aos sábados e domingos às 16h, até o dia 31 de agosto. O espetáculo, que tem duração de 65 minutos

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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