O BRASIL DE TIÃO GALINHA: João Pedro é “FEITO” e tem o corpo fechado

O BRASIL DE TIÃO GALINHA. JOÃO PEDRO É “FEITO” E TEM O CORPO FECHADO

Luis Turiba* e Rose Araujo*

 

“Ôdé Komorodé, ôdé Komorodé
Arerê Odé Komorodé, Axé Nimayô”

 

Você poderia imaginar uma Mãe de Santo fazendo a cabeça de um “iaô” em plena novela das nove, aquela que sempre passa depois do Jornal Nacional?
Afinal, esse horário é conhecido como “nobre” pela TV Globo, pois estima-se uma audiência em torno de 50 milhões de telespectadores – portanto um espaço caro, caríssimo.
Pois, então: a negra Inácia, governanta do Coronel José Inocêncio, o Rei do Cacau no interior baiano na novela “Renascer”, assumiu sua condição de Ialorixá. Na semana passada, ela vestiu sua roupa de ração toda branca, foi à mata colher ervas e plantas sagradas. Neste ínterim, encheu uma bacia com a água pura de Oxum, colhida na fonte, e deixou as folhas de molho para serem macetadas por suas mãos santas, enquanto cantava e louvava o orixá Oxóssi, o caçador que não atira na caça, mas onde “a caça vai passar”.

As folhas sagradas transformam-se em um caldo marrom esverdeado de aroma especial e inebriante. Com uma caneca de cabaça na mão, ela coloca João Pedro sentado num banquinho e derrama lentamente o “abô” em cima do seu “orí”, enquanto canta orikis para Oxóssi em iorubá. Para finalizar a “feitura”, Inácia corta um obi (um pequeno coco de origem africana indispensável em rituais religiosos nagô) e o coloca na cabeça dele, cobrindo-a com um turbante. Ele apaga e dorme profundamente com os efeitos do descarrego. Quando acorda, é outro. Reencontra o espírito de Maria Santa, sua mãe que morreu no seu parto.
Assistimos, assim, na telenovela dirigida por Walter Carvalho, um mago da fotografia, “a feitura” do filho do Coronel Inocêncio. Macumba profunda no horário nobre. Com a cerimônia, o corpo de João Pedro é “fechado”, até porque foi jurado de morte pelo outro coronel da novela, o sarcástico Egídio Coutinho, conhecido como Coronel Pica-Pau.

A guerra do coronelismo é antiga no Brasil, seja por disputa de terras e poder. No novelo da novela “Renascer”, o Brasil com suas almas, fantasmas e costumes, se apresenta nu e cru no script desta forma de arte, que não é nem teatro nem cinema, mas está entre os dois e é brasileiramente nossa.
É o caso de se indagar: quem nasceu primeiro, a TV ou a telenovela? Há quem diga que são irmãs siamesas, mas uma foi parida antes da outra.
A primeira TV brasileira – a Tupi – nasceu em 1951, portanto está prestar a completar 75 anos, uma senhora de idade avançada, porém viva, muito viva, vivíssima e, ainda aprontando e bisbilhotando as complexidades da sociedade, seus casos, histórias, dramas, culpas, fofocas e as eternas buscas de soluções. Junto com a Tupi veio ao ar a primeira novela que teve o sugestivo título de “Sua vida me pertence”, escrita e dirigida por Walter Forster e exibida de 21 de dezembro de 1951 até fevereiro de 1952. Foi a primeiro do Brasil e, dizem, do mundo.

A telenovela passou a funcionar como uma espécie de espelho invertido dos delírios sociais, políticos, culturais e econômicos do País que somos. O povo foi se identificando na telinha, despindo-se de preconceitos. Não precisava ser noveleiro(a) para enxergar isso.
O primeiro sucesso nesse ramo foi a novela mexicana “O Direito de Nascer” que, em 1978, ganhou sua versão definitiva de dramalhão envolvendo um médico que foi criado por freiras e uma ama-seca negra. A atriz principal foi Natália Timberg. O País acompanhou hipnotizado os últimos capítulos que foram apresentados ao vivo em estádios como o Maracanãzinho no Rio, pois não havia aparelhos de TV suficientes para todos.
O tempo passou. Mudaram o Brasil, o mundo e a TV. Mas, a partir dos anos 80, novela e vida real passaram a andar ombreados. Além das pitadas românticas (amores impossíveis, felicidades cármicas, traições, transtornos psicológicos, etc), as cenas se desenvolvem em ambientes sociais, culturais, econômicos e políticos.
O autor da nova versão de “Renascer” é Bruno Louperi, neto do autor original Benedito Ruy Barbosa, seguiu esta tradição usando metáforas da realidade brasileira. Recentemente, ao lançar o seu livro de memórias “Meu passado me perdoa’, o jornalista e escritor Agnaldo Silva, também autor de importantes novelas como “Roque Santeiro” e “Vale tudo”, chamou a atenção para uma certa resistência dos acadêmicos com os autores de telenovelas.
“Daqui a 50 anos, quem quiser saber como era o Brasil, vai encontrar a resposta na novela e não na literatura”, previu ele, dando uma espetada na ABL:
“Gilberto Braga, por exemplo, deveria ter se tornado um imortal da Academia, mas nunca foi cogitado.”
Um exemplo de crítica política que até hoje é relembrada, é a novela “O Bem Amado”, de Dias Gomes, que se desenvolveu a partir da peça teatral “Odorico Paraguacú”, escrita na década de 60. Foi a primeira novela em cores da TV brasileira e também a primeira a ser exportada.
O escritor Dias Gomes era um crítico do regime militar que tomou o País de assalto e deu cabo da democracia brasileira a partir do golpe de 64; e em 1969, com o Ato Institucional No 5, oficializou a censura e a ditadura no Brasil. Daí, o enredo fantástico do “Bem Amado”, com muito humor e críticas sociais…
Para Dias Gomes, o prefeito Odorico Paraguaçu é um político demagogo e corrupto que, com seus discursos inflamados e verborrágicos, ilude o simplório povo da pequena Sucupira, no litoral baiano. A meta prioritária de sua administração é a inauguração do cemitério local, criticada pela oposição ao seu governo, liderada pela família Medrado, que comanda a polícia local, o dentista Lulu Gouveia e o jornalista Neco Pedreira, editor-chefe do jornal A Trombeta.
O braço direto de Odorico na prefeitura é seu secretário Dirceu Borboleta, um tipo tímido, gago e desastrado que pratica a caça de lepidópteros. As maiores correligionárias do prefeito são as irmãs Cajazeiras: Dorotéia, Dulcinéia e Judicéia. “Solteironas” e falsas carolas, cada uma mantém um caso secreto com Odorico, sem que uma saiba da outra, até que Dulcinéia engravida e o prefeito arma para que a paternidade do bebê recaia sobre o desligado Dirceu.
Como esquecer de novelas como “Vale Tudo” e/ou a “Escrava Isaura” que transformou a atriz Lucélia Santos em personagem popular e conhecida na China, em Cuba e Portugal. E o “Pantanal” que fez a TV Manchete desbancar a TV Globo no horário nobre e se tornou a primeira novela da linhagem “ecológica”. Para não ficar para trás, a Globo comprou os direitos do Pantanal e recentemente, quando o mundo já debatia questões ligadas a crise climática, voltou a apresentá-la com novas abordagens.

Voltando à novela “Renascer”. A guerra entre os “Inocêncios” e os “Coutinhos” passou do “disse-me-disse” provocativo para atentados à bala, como o que sofreu o Coronel Pica-Pau nesta semana. Este ti-ti-ti lembra um certo clima da política brasileira, com suas tentativas de grosseiro surrupio de joias que foram doadas ao ex-presidente da República, como presentes de Estado e não para uso pessoal.
Nesta guerra no Brasil profundo do cacau, desenvolve-se uma disputa que espelha a polarização do coronelismo explícito e ligado às bancadas do agronegócio, da bala e do gado. Há na cena, um certo personagem encarnado pelo brilhante ator Irandhir Santos, conhecido na novela como Tião Galinha, que descobre a força de seu trabalho e do coletivismo dos sem-terra. Sua cabeça está a prêmio, pois passou a ser um incômodo ao Coronel Pica-Pau.
A realidade novelesca traz à tona a maneira brasileira e surreal de exercer o poder conservador à base do coronelismo identitário com seus milicianos, agentes duplos, jagunços e capangas armados até os dentes.
Assim como um grupo de coronéis milicianos – ligados a exploração territorial clandestina no Rio de Janeiro – montou e armou uma emboscada para assassinar a vereadora Mariella; os coronéis do agro estão em luta armada para emboscar culpados e inocentes numa guerra familiar que envolve filhos, amantes, ex-mulheres e uma riqueza fruto de exploração do trabalho alheio.

A arte imita a vida ou é a vida que modela a arte? Realidade ou ficção?
Tomara que justiça seja feita e nos, noveleiros de plantão, possamos saber quem, afinal, rematou Odete Roitman?

 

Os autores do texto, Luis Turiba e Rose Araújo,com o ator Irandhir Santos que interpreta João Galinha na novela Renascer da TV Globo

 

LUIS TURIBA

Luis Turiba. Foto: Rose Araujo

*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos

@luisturiba

 

 

Rose Araujo (escritora convidada)

Rose Araujo. Foto: Divulgação

 

Poeta, designer gráfico, fotógrafa e capista.

Idealizadora do Espaço das Artes da CasAmarElinha, em Itaipu Niterói.
Anfitriã poética e apresentadora da Live-papo da Passarela da Poesia, no Instagram.
Membro da APPERJ, UBE-RJ e Pen Clube do Brasil, é autora do livro Quando Vida Poesia.

@rose_araujo_poeta e @passareladapoesia

 

 

 

 

 

 

 

Author

Pernambucano, carioca, brasiliense, planetário. Rubro-negro e mangueirense. Pai de cinco filhos, avô de cinco netos. O brasileiro Luiz Artur Toribio, conhecido no universo poético como Luís Turiba, inventou e editou a partir de 1985 - ano da eleição de Tancredo Neves/José Sarney para presidente e vice da Abertura Democrática - o primeiro número (1) da revista de invenção poética Bric-a-Brac. Ao longo dos anos 80 e 90 foram confeccionadas seis edições com uma média de 100 páginas e tiragem nunca inferior a mil exemplares, que saíam anualmente com poemas textuais e gráficos; ensaios fotográficos e entrevistas que se fizeram históricas com Augusto de Campos, o bibliófilo e acadêmico José Mindlin; o cantor e compositor Paulinho da Viola; o poeta pantaneiro Manoel de Barros – entrevista feita com trocas de cartas ao longo de seis meses e resultou em 15 páginas na revista -, além da psiquiatra Nilse da Silveira, do babalorixá franco-baiano Pierre Verger; e uma visita-entrevista a Caetano Veloso com a presença de Augusto de Campos. A Bric-a-Brac era editada coletivamente por Luis Turiba, João Borges, Lúcia Leão e o extraordinário designer Luis Eduardo Resende, o Resa, com seu traço inconfundível. A última Bric foi editada em Belo Horizonte em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte de 22 com um artigo histórico de Augusto de Campos comentando as relações do grupo Noigandres com os modernistas Mário e Oswald de Andrade. Mas afinal, quem é Luís Turiba? Jornalista e poeta, cronista da vida do brasileiro comum, Turiba é pernambucano do Recife, “cidade pequena, porém descente”, terra de Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto, Capiba, Luiz Gonzaga e Chico Science. Aos 23 anos, iniciou sua carreira de Repórter no jornal O Globo e depois na editora Bloch/Manchete. A convite, mudou para Brasília, onde foi trabalhar na sucursal do jornal Gazeta Mercantil, editor de Matérias Primas, onde teve a oportunidade de cobrir e conhecer obras e projetos do chamado “Brasil Grande”, como a Transamazônica e o garimpo de Serra Pelada, e outras na região amazônica. Em Brasília, como repórter, ganhou alguns prêmios, entre os quais destacam-se dois Prêmios Essos: um no Jornal de Brasília, contando detalhes de um encontro do seu estagiário Renato Manfredini (no Jornal da Feira do Ministério da Agricultura), o Renato Russo da banda Legião Urbana, com o então todo-poderoso ministro da Agricultura Delfim Neto. O outro Esso foi no Correio Braziliense, com uma cobertura coletiva sobre as áreas públicas brasilienses que estavam sendo legalizadas para a construção de condomínios residenciais para residências de altos funcionários e militares que serviram à ditadura militar. Teve experiências no Jornalismo Político, na Assessoria de Imprensa da Câmara dos Deputados, durante a Assembleia Constituinte que formulou a Constituição de 1988. Na ocasião, assistiu do plenário da Câmara dos Deputados, a famoso discurso do jovem líder indígena Ailton Krenak, que falou vestindo um terno branco e pintando o rosto com pasta preta de jenipapo. Cobriu toda a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral para a presidência da República em 1985. Na ocasião, Tancredo criou o Ministério da Cultura e convidou para ser seu ministro o deputado mineiro José Aparecido. Anos depois, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente, Turiba foi convidado para ser Assessor de Comunicação do MinC na gestão de Gilberto Gil, entre 2002 e 2005. Editou um pequeno livro sobre a política do “Do-In Antropológico”, os Pontos de Cultura e os discursos programático do compositor de “Domingo no Parque” à frente do MinC. Em 2003, produziu os documentários "Gil na ONU" e “A Capoeira no Mundo”, com um programa mundial para a Capoeira. Ambos foram editados em DVDs com o apoio da Natura. Paralelamente à sua carreira de repórter/jornalista, publicou livros de poesia no Rio e em Brasília. Estreou com “Kiprokó”, em 1977, e depois o destaque ficou por conta do premiado “Cadê”, que venceu o Prêmio Candango de Literatura, em 1998. Voltou a morar no Rio de Janeiro em 2010, quando se aposentou do jornalismo. No Rio, publicou três livros de poesias pela editora carioca 7 Letras: “Quetais”, em 2014; “Poeira Cósmica” e em 2020, o “Desacontecimentos”, em 2022. Desde 2023, escreve um romance jornalístico-poético com suas experiências pelo mundo político com histórias vividas no histórico ano de 1968; a prisão pelo DOI-Codi em 1972; a abertura democrática e a Constituinte de 1988; a eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral; a eleição de Lula em 2002; o retrocesso provocado pela eleição do direitista negacionista que tentou um atrapalhado golpe de Estado em 2023. Título do livro que deve ser editado em 2025: “VIVA ZÉ PEREIRA; Aventuras e Desventuras de uma geração”. Ele já avisou: “o livro será um calhamaço de mais de 400 páginas, um rico material iconográfico e as dez principais entrevistas culturais que fiz na minha carreira e pelo menos 100 poemas inseridos na sua narrativa.” Turiba orgulha-se de ter nascido no mesmo ano que o Estádio do Maracanã, onde a seleção brasileira perdeu o jogo final para a seleção uruguaia por 2 a 1 e mostrou ao mundo, segundo Nelson Rodrigues, “todo o seu complexo de vira-latas”. Apesar da data possuir uma aura de trauma coletivo para os amantes do futebol, o personagem em questão considera esta data uma conquista aos avessos. “Quem viveu um “Maracanaço” só poderia ter como compensação o negro Pelé, filho da terra e redenção humana para a conquista de cinco Copas do Mundo. Por isso, o karma da derrota em 50 “não me pertence. Nem a mim, nem à minha geração. Vivemos a glória de uma geração futebolística pentacampeã do mundo. A única. Perdemos o complexo de vira-latas””, costuma afirmar orgulhoso o poeta editor da Bric-a Brac e agora colunista.

4 comments

  • Que vitória para o Portal ter trazido o talento de Turiba ! E nesse artigo, o luxo de dividir o espaço com a poeta Rose Araújo. Eles tratam com seriedade e humor as nossas principais novelas para metaforicamente falar do nosso país, da nossa cultura: religiosa, ancestral, africana, de nosso Brasil rural e urbano. Da nossa dor de pele. Da nossa música, amores, poesia. O texto flui como as águas do rio na cabeça de João Pedro. E a natureza brilha como a cor verde das florestas. Que texto gostoso de se ler, gente! Confesso que, quando vi a cena, belíssima, pensei: “mudou a TV, a Globo ou a maneira de se enxergar, com coragem,o nosso Brasil profundo? E que direção, fotografia, luz e, principalmente, que atores fantásticos aqueles? Viva a nossa cultura popular, viva Turiba e Rose Araújo e viva a dramaturgia e a arte que falam a nossa língua brasileira!

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  • Minha gratidão ao brilhante poeta-colunistaTanussi Cardoso.
    É uma honra tê-lo como leitor sensível e atento. Adelante valorizando a Língua Portuguesa reinventado no Brasil, com destaque nas telenovelas clássicas de Dias Gomes, Agnaldo Silva e outros grandes.
    Meu axé!

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