Não era para repetir, nem com o deslocamento do tempo

OLGA. Foto de Thiago Gouvea

 

Tento entender o que houve com Israel, para deixar de ser oprimido e transformar-se em opressor. E não há justificativa. Se eu tentar buscar essa resposta, perderei certamente a esperança no ser humano, na vida.

“Os solos falam conosco a medida que sobrevivem
Quem tenta se aproximar do próprio passado soterrado de e fazer como um homem. Que Escavar
Não deve temer voltar incessantemente a um único e mesmo estado de coisas
A despesa-lo como desperssamos a terra, a revirarmos o reino da terra
No sentido mais estrito, assim como um bom Relatório arqueológico não deve apenas indicar as camadas de onde provém as descobertas, mas também é sobretudo aquelas que precisaram ser atravessadas antes
A verdadeira lembrança deve fornecer ao mesmo tempo uma imagem daquele que se lembra
A arte da memória nao se reduz a um inventário de objetos trazidos a luz
Objetos claramente visíveis
A arqueologia nao é apenas uma técnica para explorar o passado
Mas tb, é sobretudo uma anamnese para compreender o presente
Observando esse solo, fazer emergir tudo que ele esconde…”

Assim a atriz Rossana Rússia entra no espetáculo, com fraguemento do texto de Walter Benjamim, que pode explicar a importância da pesquisa, da escavação, seja bom ou ruim, é preciso esclarecer e tentar entender os fatos.

A dramaturgia de Luiz Fernando Lobo foi construída a partir de uma longa pesquisa em arquivos brasileiros, europeus e americanos, em documentos primários. A Cia Ensaio Aberto reabre arquivos, escava e revisita documentos que confrontam a história oficial. “Os documentos, mesmo os aparentemente mais claros, não falam senão quando sabemos interrogá-los”, diz o historiador Marc Bloch. E complementa: “Nunca, em nenhuma ciência, a observação passiva gerou algo de fecundo.” Olga é exemplar da tradição do Teatro Documentário, que tem em Piscator e Peter Weiss seus precursores. A encenação realiza uma nova abertura da história ao revelar contradições e camuflagens produzidas pela versão oficial.

Olga

Nascida em Munique, em 1908, Olga Benário Prestes militou no movimento comunista desde a adolescência, enfrentando cedo a repressão policial. Foi treinada como agente do Comintern (Internacional Comunista) em Moscou e, em missão política, veio ao Brasil nos anos 1930 com Luiz Carlos Prestes. Presa em 1936, foi deportada com sete meses de gravidez para a Alemanha de Hitler, por ordem de Getúlio Vargas, colaborador da polícia nazista. Em 1942, foi assassinada em uma câmara de gás no campo de concentração de Bernburg. Sua filha, Anita Leocádia Prestes, sobreviveu graças a uma mobilização internacional liderada por sua avó, Maria Leocádia Prestes. Como diz a própria Anita: “Sou filha da solidariedade internacional”.

OLGA NUNCA MATOU NINGUÉM. Tinha ideais políticos, mas não era assassina. Justamente por isso devemos defender a democracia com veemência.

Não escondo que sou fã dos trabalhos da Cia Ensaio Aberto e que acompanhei parte da transformação do Armazém da Utopia. Um dos motivos desse apreço é conhecer a companhia e seu propósito: defender ideais políticos significativos. Eles não desconstroem textos, mas se dedicam a montagens que expõem a história como ela foi, revelando o caos que resultou em tragédias para milhões de pessoas. Um teatro robusto, intenso, com o propósito de alertar para os males que ainda nos cercam.

Ao falar de Olga Benário, falamos da Segunda Guerra Mundial, do nazismo, dos milhares de judeus mortos. E, por ironia do destino, vemos hoje Israel repetir práticas genocidas, enquanto nossos líderes mundiais, ao contrário de oitenta anos atrás, nada fazem.

Montagens como Olga são, portanto, necessárias para lembrarmos que as guerras devastam, destroem vidas.

O espetáculo conta com um recurso audiovisual imenso, praticamente uma tela de cinema, exibindo depoimentos e vídeos oficiais, fruto das pesquisas de Luiz Lobo e Tuca, realizadas no Brasil e no exterior.

Entre os depoimentos, está o do “Cavaleiro da Esperança”, apelido de Luiz Carlos Prestes, título também da biografia poética escrita por Jorge Amado e publicada em 1942.

O cenário de Serroni traz objetos duros — como caps, uniformes de judeus, pá, entre outros — enquanto a iluminação de Cesar de Ramires pousa com delicadeza, como uma pena que toca o chão rude que pisamos.

O texto é baseado em cartas, entrevistas e reportagens, adaptados para o teatro. A força da personagem se traduz na atuação de Tuca, que usa sua potência vocal para revelar a dor e o desespero em saber de Prestes.

A companhia focou em Olga Benário, não dando tanta voz a outros personagens. Mas entender que a sentença de morte de Olga partiu de um brasileiro é, por si só, doloroso.

Foi Getúlio Vargas quem assinou a condenação de uma mulher grávida. Se compreendêssemos verdadeiramente a história, veríamos a contradição: Lampião, que além de matar muita gente traiu o governo, não teve o mesmo destino. Afinal, o cangaço havia sido armado contra a Coluna Prestes (1925–1927), movimento político-militar que lutava por voto secreto, educação pública e o fim do coronelismo. Lampião, porém, usou as armas em benefício próprio, contra o governo e contra o sistema social que o oprimia.

O espetáculo também nos remete a outras figuras históricas, como Nise da Silveira e Graciliano Ramos (interpretado por Gilberto Miranda), ambos presos como comunistas no mesmo período que Olga. Na Alemanha, ser comunista era crime — por isso Olga foi executada em Ravensbrück.

A obra-prima de Graciliano Ramos, publicada postumamente, testemunha as prisões, as torturas sofridas por companheiros e sua própria experiência sob um regime ditatorial.

Já Anita Leocádia Prestes, filha de Olga e Carlos, tornou-se professora universitária e historiadora, atuando em instituições como a UFRJ, UFRGS e UFG. Também desenvolveu carreira como química e autora, dedicando-se a biografar a vida do pai. Nascida em uma prisão na Alemanha, Anita foi resgatada pela avó, após campanha internacional — episódio que o espetáculo recupera por meio de entrevistas com a irmã de Prestes.

É o primeiro espetáculo da companhia em que os artistas não cantam e não retornam ao palco para aplausos. Mas, afinal, aplaudir o quê? A morte? A separação de mãe e filha? A tortura?

A Cia Ensaio Aberto propõe, sim, uma catarse coletiva, para nos fazer refletir sobre o presente: como o nazismo foi assombroso, como marcou corpos e almas. Para além de prêmios, há a necessidade urgente de salvarmos o mundo de um mal que ainda encontra defensores. Revisitar essa história macabra de amor e dor só faz sentido se for em nome de um bem maior.

A peça culmina com a leitura da carta de despedida de Olga a Carlos e Anita, escrita na véspera de sua execução.

“Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça, pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. (…) Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas podem ainda acontecer tantas coisas… Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte. Beijo-os pela última vez.”

A carta é dita por Tuca com firmeza e profunda emoção, encerrando o espetáculo em tom de despedida e resistência.

Entrevista de Carlos Prestes em 1986 para o programa Roda Viva:

 

Ficha Técnica

  • Direção e dramaturgia: Luiz Fernando Lobo
  • Direção de Produção: Tuca Moraes
  • Cenografia: J.C.Serroni
  • Figurinos: Beth Filipecki e Renaldo Machado
  • Iluminação: Cesar de Ramires
  • Direção musical e trilha original: Felipe Radicetti
  • Produção Executiva: Aninha Barros

 

ELENCO

  • Tuca Moraes como Olga
  • Ana Clara Assunção
  • Bibi Dullens
  • Eduardo Cardoso
  • Gilberto Miranda
  • Grégori Eckert
  • Leonardo Hinckel
  • Luiz Fernando Lobo
  • Mariana Pompeu
  • Mateus Pitanga
  • Michael Di’Martino
  • Rossana Rússia
  • Thaise Oliveira
  • Uriel Dames

 

SERVIÇO

De 16 de agosto a 29 de setembro
Local: Teatro Vianinha | Armazém da Utopia | Região Portuária | Rio de Janeiro

Horário: sextas, sábados, domingos e segundas, às 20h
Abertura da casa 1h antes do início do espetáculo, com cota de ingressos liberados no dia
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 70 minutos

Inteira: R$ 60,00 | Meia: R$ 30,00
www.sympla.com.br/armazemdautopia
Dia 18/8 – apresentação com intérprete de libras

► Para agendamento de grupos (escolas, projetos sociais, associações, etc.) entre em contato por meio do WhatsApp (21) 98909-2400

@CompanhiaEnsaioAberto

Lotação: 120 espectadores

 

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

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