Mitologias pelo mundo, além da grega: a história de todos nós – parte XV – conheça a Mitologia Aborígene Australiana

Os analfabetos do século 21 não serão aqueles que não sabem ler e escrever, mas aqueles que não sabem aprender, desaprender e reaprender.Alvin Toffler (1928-2016), escritor e doutor em letras norte americano

 

Na primeira parte deste longo artigo, situamos o contexto histórico e algumas questões filosóficas, por assim dizer, sobre os quais as mitologias pelo mundo, de um modo geral, foram edificadas. Na segunda parte, a temática versou sobre a mitologia grega, talvez uma das mais famosas em todo mundo. Na terceira parte, mergulhamos em passagens mitológicas da nossa terrinha tupiniquim, com histórias dos povos originários e dos negros africanos que foram, indignamente, escravizados e trazidos para o Brasil. Na quarta parte, começamos, efetivamente, digamos deste modo, a passear pelas mitologias de vários povos, iniciando, este passeio, pela nossa América Latina, com históricas dos povos pré-colombianos e mesoamericanos. Na quinta parte, regressaremos para a Europa, com partes de histórias que, também, muito influenciaram a nossa cultura brasileira, até porque, mantiveram forte relação com a cultura da Grécia Antiga, no caso da mitologia romana, ou que nos fascinam sobremaneira, até os dias atuais, como a egípcia. Na sexta parte, falaremos, brevemente, sobre dois povos um tanto menos conhecidos dos que os gregos, os romanos e os egípcios, mas que com eles mantiveram profundas relações culturais e, especialmente, conflituosas, os frígios e o hititas. Estes últimos, com destaque especial para as várias guerras travadas com os egípcios. A despeito do espírito guerreiro, suas mitologias também são capazes de nos encantar. Continuemos, pois, nossa viagem encantada pelo mundo antigo e suas belas histórias. Na parte sétima, passeamos um pouco pelas culturas árabe e persa, diferentes, porém, um tanto conectadas entre si, bem como, por mais incrível que possa parecer para alguns, com a cultura judaica, isso, para além da localização geográfica e histórica. Na oitava parte, em nossa viagem, fomos mais para o norte do globo terrestre, mais precisamente, para as terras bárbaras (germanos, eslavos, tártaro-mongóis, vikings etc.) do deus Thor e de tantos outros queridos personagens mitológicos. Na nona parte, rumamos para o Oriente distante, para o segundo maior território nacional, que abriga a maior população do planeta e dialogamos um tanto com a mitologia do vasto, complexo e bonito Império Chinês. Fomos para o Extremo Oriente e rumamos para o Império do Sol Nascente, o Japão e sua rica cultura milenar. Mantendo a viagem pelo Oriente, conhecemos um tanto da cultura mitológica de eslavos e russos, povos tão fascinantes quanto misteriosos. Dando certa seqüência no que podemos classificar, como na parte anterior, de povos misteriosos, porque com culturas bastante distantes da nossa, seguiremos viagem para a Índia, segundo país mais populoso do planeta (só perde para a China). A escala anterior da nossa viagem foi por uma região que, dizem os historiadores, talvez tenha começado o que chamamos hoje de “civilização humana”, ao menos no sentido das primeiras e grandes comunidades gregárias, como os Assírios, os Babilônicos e os Sumerianos (dentre outros), área desde sempre muito conflagrada, infelizmente, que conhecemos por Oriente Médio. Pedi para esquecermos os massacres que têm tido lugar por lá, as barbaridades que são cometidas em nome de um deus de amor que seus detratores não crêem, na verdade, as atrocidades mentirosas que, como mostrou Mark Twain, são contadas sobre a história de vários povos locais tão sacrificados, mesmo por outros povos que também foram perseguidos há não muito tempo histórico, e sugerir que nos deleitássemos um tanto com mais região rica em muitas coisas, inclusive no tocante às mitologias que por lá nasceram. Nossa viagem está quase no final, ao menos esta que estamos realizando sobre as mitologias pelo mundo. Na penúltima escala, iremos fazer breve visita a uma região tão famosa quanto, por outro lado, pouco conhecida, a Polinésia e dela, na última escala, iremos para a mitologia dos aborígenes australianos.  É sempre importante conhecermos, o mais possível, sobre aquilo de quem ou do quê falamos ou escrevemos, senão, há sempre o risco de falarmos besteira, além de supervalorizar outras pessoas ou fatos ou coisas, que não mereceriam tanto de nossa estima. Enfim, fomos para a Polinésia. Chegamos agora ao destino final de nossa viagem, mantendo-nos, ainda, na Oceania: conheçamos um pouco da mitologia Austrália.

 

Mitologia Aborígene Australiana

Vimos, na décima quinta parte deste longo artigo, histórias da mitologia da Polinésia. Agora, nesta parte final que é, a bem da verdade, certo desdobramento da parte anterior, veremos, especificamente, algumas histórias específicas da mitologia australiana.

Representação de um aborígene australiano em cerimônia religiosa

A Austrália, maior das Ilhas da região, considerada a maior ilha do planeta, é o lar de vários grupos indígenas, conhecidos por Aborígenes, muito ligados à sua terra, que chamam, como os nossos povos originários, diga-se de passagem, de “Mãe Terra”. Desta conexão surgiu sua espiritualidade e suas crenças. Dreamtime é um termo comumente usado para descrever as características importantes das crenças das comunidades aborígenes. De acordo com eles, sua terra e seu povo foram criação de espíritos, tanto quanto foram esses entes a lhes fornecer ferramentas de caça e terras. São narradas várias históricas de como o Universo surgiu, como as coisas aconteceram e como as pessoas foram criadas. De acordo com os Aborígenes, a História foi um começo de algo que não tem fim. Formando o passado, o presente e o futuro, os espíritos desapareceram da vista dos mortais, mas continuam a residir em lugares secretos. Alguns deles, segundo crêem, habitam o território da tribo em árvores, poços de água e fendas nas rochas (de modo similar às Ninfas gregas e aos Kamis japoneses); outros viajaram para o céu como corpos celestes (outra crença muito comum a vários povos); outros mais se transformaram em forças naturais como chuva, vento, trovões e relâmpagos. Vamos conhecer alguns desses seres mitológicos.

 

Serpente Arco-Íris

De acordo com o mito, a Serpente Arco-Íris teria vindo do subsolo e teria sido responsável por criar montanhas, desfiladeiros e grandes cordilheiras à medida que trafegava, por assim dizer, pelas entranhas da Terra. Criatura de proporções gigantescas, a Serpente Arco-Íris residia em poços profundos e controlava um dos recursos mais preciosos da vida, a água. Entre algumas das comunidades aborígenes, acredita-se que a Serpente Arco-Íris seja a criadora final do Universo (que, também crença comum e universal, é uma espécie de “terceirização” do processo de criação do mundo e da vida, como na mitologia católica, chinesa, maia etc.).

Serpente Arco-íris

Comunidades diferentes atribuem significados alternativos a essa entidade; algumas delas acreditam que a Serpente Arco-íris seja fêmea, enquanto outras acreditam que seja macho; outros ainda a consideram ambígua, um ser hermafrodita; por vezes, aparece como um ser bissexual. Algumas das crenças também conectam essa entidade com mitos e rituais de fertilidade. Algumas das histórias a associam a um morcego, a um crocodilo, a um lagarto, a um pássaro e até a uma raposa voadora. Seja qual for a forma, contudo, a entidade sempre está associada à água. A Serpente Arco-íris era frequentemente identificada com uma criatura aterrorizante que viveria em um poço, conhecido como Bunyip.

Seria a Serpente Arco-Íris, assim, que reabasteceria os recursos hídricos da Terra, formando canais profundos  e ravinas ao se mover pelo subsolo. De acordo com o mito indígena, sem essa criatura, a Terra não receberia chuva. Quando a serpente estava com raiva, era quando surgiam trovões e relâmpagos. Além de sua identificação com o arco-íris, a Serpente também está conectada com o halo prismático ao redor da lua. Para agradar a entidade e trazer chuva, algumas culturas realizava, e ainda o fazem,  rituais sagrados com conchas e cristais de quartzo.

 

Os Três Irmãos

As Montanhas dos Três Irmãos são elevações da região australiana de Mid North Coast em South Wales. Situadas entre as aldeias de Laurieton e Moorland, as montanhas têm um significado espiritual para os Aborígenes. Eles acreditam que alguns de seus ancestrais ainda residem lá, e as montanhas os protegem. Segundo o mito indígena, três irmãos foram assassinados por uma bruxa. Eles foram enterrados onde estão as montanhas hoje. No mito, os irmãos pertenciam à tribo Biripi e viviam perto do rio Camden Haven.

Em outra versão, os três irmãos passaram por uma cerimônia de iniciação. Foi exigido que vivessem na selva por muitos meses antes de voltar para sua tribo. Isolados, começaram a se preocupar com os pais e o mais jovem se ofereceu para ir ver como eles estavam. Ao sair, ele avistou uma velha bruxa perto de seu acampamento e ao retornar da aldeia, viu que a bruxa havia devorado seus irmãos. Vendo que ele era a próxima vítima, bateu na cabeça dela e a matou, juntando os ossos de seus irmãos e os enterrando onde as Montanhas do Irmão do Norte e do Irmão do Meio estão hoje. A Montanha Irmão do Sul é para onde ele foi e se matou com vergonha de não ter conseguido proteger seus pais e irmãos.

 

O Emu e o Jaburu

O mito narra a história da ganância entre dois cunhados. Através de sua luta, eles foram transformados no primeiro Emu e no primeiro Jaburu ou Jabiru ou Tuiuiú, no Brasil (uma grande ave que, no Brasil, vive no Pantanal e é tida, por alguns, como o “urubu pantaneiro”) da terra. A lenda começou com um homem chamado Gandji e seus filhos, que pescavam arraias. Depois de pescarem bastante, eles voltaram e ofereceram uma parte do pescado para Wurrpan, o cunhado de Gandji e seus filhos. No entanto, Wurrpan descobriu que Gandji salvou o melhor peixe para sua própria família. Uma luta começou e Wurrpan foi atacado por Gandji, que jogou pedras nele. Temendo o que o Wurrpan faria para retaliar, Gandji começou a pular e voou até se transformar em um Jaburu. Quanto à Wurrpan, ele e sua família se transformaram em Emas para que pudessem correr mais rápido do que o Jaburu e dele fugir. Segundo a mitologia local, foi assim que Emus e que os Jaburus chegaram às suas terras.

 

Por que o crocodilo rola?

Já se perguntou por que os crocodilos rolam e arrastam suas vítimas antes de devorá-las? Os aborígenes têm uma explicação para isso. De acordo com o mito, tudo estava muito indo bem nos assentamentos aborígines. As pessoas eram felizes, prósperas e não havia fim para os alimentos e para os outros recursos. As meninas brincavam juntas, as mulheres preparavam as refeições e os homens treinavam os meninos para assumir funções tribais. Mas a vida na aldeia não era suficiente para uma garota, Min-na-wee, que constantemente arrumava brigas com as outras meninas e meninos. De acordo com o mito, seu rosto foi envelhecendo duro e escamoso e os anciões previam que algo desagradável iria acontecer com ela. Quando Min-na-wee cresceu, perceberam que ninguém se casaria com ela. Depois de uma luta, os anciões decidiram que alguma punição deveria ser aplicada à menina e para não ser pega, ela começou a rolar no chão, chamando espíritos malígnos para transformá-la em um animal para que pudesse buscar vingança. Esses espíritos a transformaram em um crocodilo e, até hoje, os aborígenes acreditam que são as ações de Min-na-wee que agora fazem com que os crocodilos rolem e arrastem suas vítimas antes de comê-las.

 

Black Mountain

Os aborígenes chamam, também, a montanha Kalkajaka, que significa o “lugar da lança”, que é uma grande massa de enormes pedregulhos de granito que paira sobre a paisagem, de “Montanha Negra” Para alguns, é um lugar misterioso, para outros, um local sagrado. Alguns aventureiros de fora do país chamaram a região de Triângulo das Bermudas” de Queensland. Há muitas histórias de exploradores primitivos, gado e cavalos que teriam desaparecido nas rochas da montanha sem deixar rastro. De acordo com o mito aborígene, de todo modo, a montanha é um local assombrado e lar de muitos espíritos malignos e demônios.

Black Mountain

 

Como a água chegou às planícies

Há muito tempo, quando o Universo foi criado e os aborígenes se estabeleceram nas montanhas, as chuvas ainda eram escassas e os nativos ficaram preocupados. Quando chovia, a água descia pela encosta da montanha até o mar, que ficava longe dos assentamentos humanos. Do outro lado da montanha, havia algumas planícies secas onde nada poderia ser cultivado e a água estava diminuindo no reservatório. Dois homens chamados Weeri e Walawidbit decidiram roubar o que restava da água e deixar o local. Eles construíram um enorme carregador de água em segredo, chamando-o de enguia-a-mun. Ao cair da noite, quando todos estavam dormindo, os dois homens roubaram a água e fugiram. Na manhã seguinte, os habitantes ficaram chocados e em pânico ao verem o reservatório vazio. Os anciãos, ao convocarem uma reunião, viram que os dois jovens estavam desaparecidos e os guerreiros do clã partiram para caçá-los.

A carga atrasou Weeri e Walawidbit e localizados os guerreiros começaram a atirar lanças nos dois homens e uma atingiu o carregador de água, abrindo um buraco enorme. Na ânsia de pegar os fugitivos, os guerreiros também não perceberam o vazamento até que o carregador estivesse quase vazio. Os dois ladrões foram levados de volta para casa e foram punidos, não apenas pelo roubo, mas também porque se colocaram em primeiro lugar, disseram os anciões, deixando de lado a comunidade. Então Wonmutta, um velho sábio da tribo, transformou Weeri em um Emu que correu para as planícies. Quanto a Walawidbit, ele foi transformado em um lagarto de língua azul que rastejou para as fendas das rochas e a água que vazou do carregador, em parte, abasteceu uma espécie de bebedouro para a aldeia e, em parte, vazou para as planícies áridas e secas, que a transformaram em paisagens verdes exuberantes, onde a vida prosperou.

 

A Piscina ou o Poço do Diabo

A Piscina ou Poço do Diabo é uma piscina natural existente em um trecho particularmente traiçoeiro de um lugar chamado Babinda Creek. O leito do rio, diz a lenda, era cheio de enormes pedras de granito e era notória pelas muitas vidas que tirava. O mito indígena narra a história de uma jovem chamada Oolana, que era da tribo Yindinji. Oolana foi prometida a um respeitado ancião da tribo, mas ela conheceu um jovem guerreiro chamado Dyga, que, como tantas vezes acontece, era de uma tribo diferente; eles fugiram de suas tribos para a floresta para ficarem juntos. Não obstante, de acordo com a lenda, os anciões os pegaram e arrastaram Dyga para longe. Oolana escapou e pulou na Piscina ou Poço do Diabo em desespero; diz a lenda que seus lamentos angustiados se transformaram em torrentes de água que formaram a lagoa e a piscina natural. De acordo com o mito indígena, seu espírito assombra o Poço do Diabo e afoga qualquer pessoa inconsciente que vá nadar (semelhança com “Romeu e Julieta”, em mais um exemplo de um arquétipo Jungiano? Talvez).

 

Mitos indígenas sobre o corvo

De acordo com os mitos autóctones australianos, o corvo é um malandro, um ser ancestral e um herói cultural. As lendas sobre o corvo são diferentes entre as diferentes culturas da Austrália (e mesmo do mundo). Uma lenda comum ao redor do planeta narra como o corvo desempenhou um papel importante ao trazer o fogo para os humanos (terá algum fundo de verdade?). De acordo com a história contada pelo povo Wurundjeri da nação Kulin, na época da criação do Universo, o fogo era guardado de perto por sete mulheres Karatgurk que moravam perto do Rio Yarra (onde hoje fica a atual cidade de Melbourne). As mulheres carregavam carvões acesos na ponta de palitos e inhames cozidos. O corvo queria o fogo, mas as mulheres se recusavam a compartilhá-lo. Alegando que havia comida escondida lá dentro, o corvo chamou as mulheres, que começaram a cavar, mas algumas cobras saltaram sobre elas. Enquanto elas se defendiam, o corvo, trapaceando, e roubou o fogo. Como dizia o escritor Alvin Toffler, o maior analfabeto não é que não lê, mas o que não sabe e, de algum modo, se recusa a (re)aprender.

Canguru (animal típico da Austrália)

A Austrália, como vêem, tem muito mais do que uma bela bandeira nacional e mais símbolos populares e culturais, advindos da cultura local dos Aborígenes, do que, muitas vezes, é imaginado; a Austrália é muito mais do o deserto com cangurus, dos coalas, dos escorpiões; é a mais bela existência de um povo, conhecido pela alcunha há pouco escrita, qual seja, a de “Aborígenes”: a Austrália é a origem e o repositório de parte da cultura primordial da humanidade.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana


cfgalvao@terra.com.br

@cfgalvao54

 

 

Bibliografia de consulta e sugerida para aprofundamento:

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *