As dificuldades são como as montanhas; elas só se aplainam quando avançamos sobre elas.
Provérbio Japonês
Na primeira parte deste longo artigo, situamos o contexto histórico e algumas questões filosóficas, por assim dizer, sobre os quais as mitologias pelo mundo, de um modo geral, foram edificadas. Na segunda parte, a temática versou sobre a mitologia grega, talvez uma das mais famosas em todo mundo. Na terceira parte, mergulhamos em passagens mitológicas da nossa terrinha tupiniquim, com histórias dos povos originários e dos negros africanos que foram, indignamente, escravizados e trazidos para o Brasil. Na quarta parte, começamos, efetivamente, digamos deste modo, a passear pelas mitologias de vários povos, iniciando, este passeio, pela nossa América Latina, com históricas dos povos pré-colombianos e mesoamericanos. Na quinta parte, regressaremos para a Europa, com partes de histórias que, também, muito influenciaram a nossa cultura brasileira, até porque, mantiveram forte relação com a cultura da Grécia Antiga, no caso da mitologia romana, ou que nos fascinam sobremaneira, até os dias atuais, como a egípcia. Na sexta parte, falamos, brevemente, sobre dois povos um tanto menos conhecidos dos que os gregos, os romanos e os egípcios, mas que com eles mantiveram profundas relações culturais e, especialmente, conflituosas, os frígios e o hititas. Estes últimos, com destaque especial para as várias guerras travadas com os egípcios. A despeito do espírito guerreiro, suas mitologias também são capazes de nos encantar. Continuemos, pois, nossa viagem encantada pelo mundo antigo e suas belas histórias. Na parte sétima, passeamos um pouco pelas culturas árabe e persa, diferentes, porém, um tanto conectadas entre si, bem como, por mais incrível que possa parecer para alguns, com a cultura judaica, isso, para além da localização geográfica e histórica. Na oitava parte, em nossa viagem, fomos mais para o norte do globo terrestre, mais precisamente, para as terras bárbaras (germanos, eslavos, tártaro-mongóis, vikings etc.) do deus Thor e de tantos outros queridos personagens mitológicos. Na nona parte, rumamos para o Oriente distante, para o segundo maior território nacional, que abriga a maior população do planeta e dialogamos um tanto com a mitologia do vasto, complexo e bonito Império Chinês. Agora, prosseguindo com nossa viagem para o Extremo Oriente, rumaremos para o Império do Sol Nascente, o Japão e sua rica cultura milenar.
Mitologia Japonesa
O Mito da Criação
Os deuses originais, pura energia, criaram dois seres divinos, pela origem, Izanagi (“aquele que é convidado”), que representava o céu (como Urano, na mitologia grega) e Izanami (“aquela que convida”), que representava a Terra (como Gaia, na mitologia grega), os quais, mesmo irmãos, nem por isto deixaram de se casar, cultura muito comum em vários povos da antiguidade, especialmente no seio das realezas. Para construírem o mundo, receberam, as duas divindades criadas, uma lança decorada com joias, a Amenonuhoko (“lança do céu”) e com ela removeram o mar e fizeram surgir a ilha de Onogoro-Shima, para onde se encaminharam, e lá tiveram dois filhos, Hiruko e Awashima. Porém, Izanagi e Izanami consideraram os dois imperfeitos, os puderam em um barco para morrerem e se separaram. Indagando aos deuses o que fizeram de errado e terem como resposta que nada haviam feito de reprovável, casaram-se novamente e desta união, nasceram as oito principais ilhas que, hoje, compõem o arquipélago do Japão, chamadas de Ohoyashima. Depois, o casal gerou as entidades que os japoneses chamam de Kami, espécies de espíritos divinos que habitam todas coisas do mundo (árvores e pedras, montanhas e animais etc.).
Entretanto, ao dar à luz a um deles, que foi chamado de Kagutshuchi (“encarnação do fogo”), Izanami morreu e Izanagi, encolerizado, matou kagutschuchi e foi para a Yomi (“a terra sombria dos mortos”; o Submundo, o Tártaro, o Inferno) para tentar reaver sua amada. O espírito que para este lugar fosse não poderia regressar, mas Izanami tentou reverter a situação, mesmo assim, o que não conseguiu porque, mesmo a encontrando, ela já tinha comido do alimento dos mortos e isso a impediria completamente de voltar ao mundo dos vivos (exatamente igual à mitologia grega, com Perséfone, filha de Deméter, raptada que fora por Hades para ser sua esposa). Izanagi, conformado, deixou o submundo ou mundo inferior e voltou para a superfície ou mundo superior. Porém, antes de voltar, decidiu pegar o pente do cabelo de Izanami, como recordação, e vê, longe das sombras que a escondiam, seu corpo deformado pela decomposição, típica dos mortos. Revoltada porque, outrora bela, tendo sido vista neste estado, mandou demônios atrás de Izanagi, que lutou contra eles e os aprisionou na saída do Yomi, pondo uma pedra enorme que os impediu de sair. E assim começou a morte, da qual ninguém retorna.
O Mito do Sol, da Luz e do Vento
Conta a história dos Kamis que a partir do banho de Izanagi em um rio, para se purificar de sua descida ao Yomi, foram gerados Amaterasu (Sol), Tsukuyomi (Lua) e Susanowo (Oceano). A partir destas primeiras divindades mitológicas, é contada a história da criação do mundo, do Japão e dos demais elementos da natureza, como Shinigami (Deus da Morte).
Existem versões múltiplas da mitologia japonesa. As duas mais conhecidas e populares contam as histórias narradas em dois livros: o Kojiki, a mais antiga crônica do Japão, compilado por volta 710 d.C. , conhecido como “Registro das Coisas Antigas” e o Nihongi, também chamado de “Nihon Shoki” ou “Hihongi”, que narra as “Crônicas do Japão”, compilado em torno de 720 d.C. As narrativas contidas nesses dois antigos registros são mais do que simples contos, pois são ricas em simbolismos e trazem em seu bojo um leque de conhecimentos mais filosóficos para nós, ocidentais, do que sagrados conforme (também) são para os japoneses. O conto a seguir, por exemplo, narra a criação do mundo no entendimento dos japoneses antigos, está relatado nos dois livros, ou seja, há duas versões.
Um elemento curioso da mitologia japonesa são as histórias que envolvem as Kitsunes (raposas). Para o folclore japonês, as raposas são descritas como seres inteligentes e mágicos. Muitos são os mitos japoneses, chineses, coreanos e indianos envolvendo estes animais.
O princípio do Mundo e os Primeiros Deuses – versão Kojiki
Antes do Céu e da Terra existirem, havia o Caos (tal como na mitologia grega, na Maia…), inimaginavelmente ilimitado e sem forma definida. Desse espaço infinito e sem fronteiras e sem forma emergiu uma massa límpida, leve e transparente, vindo a formar o Céu; ela se chamava Takamagahara ou a “Planície dos Céus Elevados”, na qual se materializou a deidade “Ame-no-Minaka-Nushi-no-Mikoto” (Deidade do Augusto Centro do Céu). Logo depois, os Céus deram à luz a deidade “Takami-Musubi-no-Mikoto” (Elevada Augusta Deidade Produtora de Maravilhas). Em seguida, deram à luz a terceira deidade, “Kammi-Musubi-no-Mikoto” (Divina Deidade Produtora de Maravilhas).
Estes três seres divinos, espontaneamente se ocultavam e eram considerados “As Três Deidades Criadoras”. O que era pesado e opaco neste caos, gradualmente se precipitou e assentou, transformando-se na Terra. No entanto, levou um tempo imensamente longo para se condensar suficientemente e formar o terreno sólido que formou a superfície terrestre. Em seu estágio primordial, por milhões e milhões de anos, a Terra assemelhou-se a uma mancha de óleo flutuante, como água-marinha na superfície do oceano. De repente, como se jorrasse por um tubo, dois seres imortais nasceram de suas entranhas. Eles eram as deidades “Umashi-Ashi-Kahibi-Hikoji-no-Mikoto” (Deidade Príncipe Primogênito do Agradável Jorro do Tubo) e “Ame-no-Tokotachi-no-Mikoto” (Deidade Celestial Eternamente Pronta). Muitos deuses então nasceram sucessivamente e assim eles cresceram em número. As Deidades Izanagi-no-Kami (Aquele que é convidado ou Divindade Sagrada da Calma) e Izanami-no-Kami (Aquela que convida ou Ondas da sagrada Divindade), foram os últimos deuses a aparecer e, posteriormente, eles foram incumbidos de criar o arquipélago japonês (conforme visto antes).
O princípio do Mundo e os Primeiros Deuses – versão Nihongi
No princípio dos tempos, o Céu e a Terra não eram entes separados, mas originaram o In e o Yo. Eles correspondem ao Yang e Yin chineses, dois conceitos básicos do Taoísmo que expressam a dualidade de tudo que existe no Universo e descrevem as duas forças fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas; eles também constituem os princípios de “masculino e feminino’ (tal como no Zoroastrismo). Na Mitologia Polinésica, a Maori, especificamente, povo antigo da, hoje, Nova Zelândia, encontramos a concepção, em que Rangi ou Ranginui (o Deus maior) e Papatuanuku representavam o Céu e a Terra, respectivamente. Aspectos paralelos podem ser encontrados em histórias da Cosmogonia Egípcia, entre outras. Em praticamente todas elas, nos deparamos com o princípio “masculino e feminino”, ocupando lugar preponderante.
Os registros do Nihongi nos contam que no princípio havia a massa caótica que era comparada a um ovo, no qual os limites e os embriões contidos estavam obscuramente definidos. Este “ovo” criou vida rapidamente e sua parte mais clara e pura soltou-se, vindo a formar o Céu. Já a parte mais densa e pesada assentou, formando a Terra, que era comparada a um peixe flutuando e brincando na superfície das águas. Uma forma misteriosa, que lembrava um broto de um caniço (planta delgada; cana), surgiu de repente entre o Céu e a Terra e inusitadamente se transformou, nascendo assim o primeiro Deus, “Kuni-toko-tachi” (Eterno Suporte Terreno das Coisas Majestosas).
A Mitologia japonesa é rica em narrativas e abraça tradições, além das Taoístas, igualmente, as Xintoístas e as Budistas. O panteão Shintô (Caminho dos Deuses) compreende inúmeros Kami (espíritos) que deram origem às infinitas lendas da Terra do Sol Nascente. Entre seus principais Kami estão, relembrando, Izanagi e Izanami, os primigênios progenitores das Mihashira-no-uzu-no-miko (as “Três Nobres Crianças”) que estão no comando do Céu e são, segundo a mitologia: Amaterasu, “Deusa do Sol”, Tsukuyomi, “Deus da Lua” e Susanowo, “Deus das Tempestades e do Mar”.
Existe, ainda, o Shintoshu, livro que descreve as origens de divindades japonesas a partir de uma perspectiva budista, enquanto o Hotsuma Tsutae registra uma versão substancialmente diferente da mitologia. Hoje, as duas religiões/filosofias de vida, Xintoísmo e Budismo, estão entrelaçadas. O Shintô (“Shin”, deus; “tô”, caminho = caminho de deuses), proclama a necessidade da pureza e a exigência da sinceridade. A pureza supõe a eliminação da contaminação pelo sangue, pela morte, pelos alimentos impuros e é conseguida através dos ritos purificadores; imi (abstinência), o misogi (banho frio purificador) e o harai (o rito oficiado). Há ritos consagrados nas festas semestrais de 30 de junho e 31 de dezembro, chamadas de O-harae (a “Grande Purificação”).
Há uma explicação sobre a origem da Família Imperial, que justifica a sua divindade e a nobreza de sua linhagem. O título japonês do Imperador do Japão “Tenno”, significa “Soberano Celestial”. O Imperador Akihito, é o 125º descendente direto do Imperador Jinmu, considerado como o “Primeiro Imperador do Japão“, que por sua vez era tido como mítico descendente da Deusa0 Amaterasu, a “Deusa do Sol”.
O povo japonês é mundialmente conhecido por sua organização e disciplina. Como tudo na vida, há, no mínimo, dois aspectos que podemos ressaltar desta constatação: essa característica faz com que a vida social-cotidiana seja extremamente rígida e hierarquizada, porém, também faz com que, como vimos no provérbio local que abre esta décima parte deste longo artigo, possamos escalar muitas montanhas (obstáculos), literal e simbolicamente.
Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
Bibliografia de consulta e sugerida para aprofundamento
- SEGANFREDO, Carmen. As melhores histórias da Mitologia Japonesa. Porto Alegre: Editora L&PM, 2012.