O teatro é surpreendente, ele tem a capacidade de unir a humanidade, ele acolhe a todos e confere liberdade a todas as ideias, exatamente por isso eu amo as artes cênicas. Foi através dele também que pude executar minhas ideias e por para fora fios de pensamentos guardados. O que seria de mim se não fosse o teatro?
Digo isso porque tive uma experiência incrível em uma das últimas peças que assisti. Confesso que fui ao teatro não muito crente que a obra iria me agradar, pensei que seria o mais do mesmo, embora ciente do fenômeno em vendas de ingressos, vi pessoas voltando para casa e isso para os dias atuais é um feito e tanto.
Na luta pela sobrevivência numa sociedade que não trata os seus com equidade, surge uma criatura que com sua energia voraz, caminhos desafiadores e conflituosos, busca garantir não só sua sobrevivência, mas de todos que são merecedores do seu amor. Menina Mojubá retrata não somente uma história real, como também entrega um presente ancestral. (Sinopse)
Conheci a encantadora Marcela Treze, atriz e dramaturga, um tiquinho de atriz, pequena, franzina, mas com um carisma que vai além do que eu possa escrever aqui. Fiquei em uma sinuca de bico, porque sabemos a importância de uma crítica e a responsabilidade de escrever sobre ela com ética acima de tudo.
Primeiro gostaria de entender como nas pesquisas/senso, temos um grupo tão pequeno de pessoas que seguem religiões de matrizes africanas, porque pelo que vi, são muitas. E no espetáculo tive a sensação que só eu era simpatizante dessa fé. Eu era a única não cantar baixinho junto a atriz os pontos entoados por ela no palco.
Mas Patrícia, essa obra leva pessoas devido ao tema levado ao palco?
Também, mas o que me surpreende é que há nela um encontro de técnicas teatrais bem executadas, isso é inegável, elementos do teatro que se juntando trazem aos que assistem uma beleza encantadora. Saí tão feliz do teatro, por uma série de motivos. Primeiro, estou em uma produção teatral, então, quando tenho um tempo livre, eu poderia estar longe das artes cênicas, mas acabo indo ao teatro, o que poderia ser chato, e detalhe para escrever sobre, e se a peça é boa, me conquista, digo para mim mesma: ainda bem que você não ficou em casa!
Todo teatro me interessa, mas aqueles que me trazem conhecimento, esses me deixam em êxtase. Aprendi sobre pomba gira em “Menina Mojuba”, assim como na bíblia, há também histórias interessantes nas religiões de matriz africana, que vale muito serem desnudadas e contadas.
No “O Livro das Religiões” dos escritores Henry Notaker, Victor Hellern e Jostein Gaarder, o último é o mesmo autor do clássico “O Mundo de Sofia”, da Cia das letras, diz que parte dessas religiões africanas não tem textos escritos, mas que durante um bom tempo, dizem que por séculos foram observadas por europeus, colonizadores e missionários, então logo concluo tanto preconceito a essa crença. Diante da leitura, posso dizer que passei a respeitá-la ainda mais por sua resistência.
No meio artístico coube a Jorge Amado, macumbeiro, defender sua fé, quando senador, abriu caminhos em 1946, e se não fosse ele…
Como Zé Celso, os três artistas se aqueciam e cantavam: meu cavalo tá pesado, meu cavalo quer voar, mostrando para mim a força do teatro democrático, pois no palco tudo e todos são bem-vindos. Que maravilha, me junto a um amigo crítico que fala: minha religião é o teatro, e posso afirmar que estou quase lá.
E a obra começa.
A obra que começou no Festu, Festival de Teatro Universitário, que já levou dois artistas, por meio de dois espetáculos apresentados no festival organizado por Felipe Cabral, ao prêmio Shell, o maior prêmio de teatro do Brasil. A cada ano esse festival tem trazido a cena carioca obras ricas, e eu o saúdo por isso. E pelo visto temos mais uma obra potente, oriunda desse projeto fantástico.
A obra conta com movimentos muito elegantes, a atriz traz ao palco movimentos que se transformam em um cenário praticamente, não sentimos falta dele, sua ausência é insignificante diante da luz e do corpo da atriz que em movimento nos traz, a estética visual é perfeita. O desenho de luz é da Isabella Castro, que merece palmas.
Já o figurino é assinado por Wanderley Gomes, que nesse momento encontra-se com os dedos como pineira, de tantos bordados. Chapéus e flores, adereços que dão vida a todos do elenco. A meu ver, é o melhor figurino do artista depois do último prêmio Shell de teatro recebido por ele. Há muita harmonia entre o figurino, a luz e o movimento de corpo. É trisal que se diz?
Wanderley em um dos vestidos homenageou uma artista mexicana, que para ele está dentro do conceito futurista da sua arte.
Muito brilho, muito vermelho, há tanta elegância no terreiro do palco que me perdi, ficando boquiaberta diante do feito. O figurino não expõe a atriz em nenhum dos movimentos e os adereços também por ele desenhado são magníficos. Viva!
Cátia Costa preparou o corpo da atriz, podemos dizer que há beleza em tudo, músculos aparentes em todos os movimentos, maturidade em entender o conceito do texto, uma linguagem específica e bem colocada na obra através do elemento movimento. Até a forma de segurar a saia da senhora pomba gira!
A direção musical de César Lira é um escândalo. Jamais eu imaginaria que em um espetáculo de gira (risos), eu iria ouvir um saxofone, um oboé, é de uma beleza e significância tremenda. Lira soube conduzir os pontos com primor, magnitude e elegância, penso ser essa a palavra certa. Fiquei surpresa diante do que vi, não por não acreditar no feito do artista, mas pela criatividade e teatralidade musical do César. E ele não esqueceu dos atabaques e berimbau, mas tudo posto delicadamente, no momento certo e na cadência certa. Gratidão por ter me levado ao teatro na essência, onde tudo pode!
Gabriel é o diretor, músico e artista nesse espetáculo, enfim, um multiartista, não somente de falar, mas mostrar tudo de uma vez só. Falar é fácil, mostrar portifólio também, mas executar…
Ele executa ao lado da atriz e dramaturga Marcela Treze, não existe Marcela sem Gabriel ou Gabriel sem Marcela, vai para além do palco. Estão juntos em tudo, estavam juntos até mesmo quando se apresentaram para seis pessoas no teatro do João Caetano, e hoje juntos, quando vi pessoas voltando para suas casas por ter ingressos esgotados. É sobre isso…
Marcela Treze, o que falar dessa menina, da arte e confiança que ela traz para o espectador? A menina no palco se transforma, como se fosse através da metamorfose, alcança as asas para voar como uma borboleta, e com seus voos alegres nos permite assistir uma atriz com demasiada qualidade no palco do teatro Glauce Rocha. Dizem que a peça tem mais de uma hora, mas acho que ela faz feitiço, e esse feitiço é feito para os nossos relógios, porque eles validam o tempo do espetáculo, mas não sentimos passar, é magia, creiam nisso.
Falando em magia, segundo o jornalista e escritor Stephen J. Spignesi, enciclopedista reconhecido nos Estados Unidos e em nível internacional no livro “Os Cem Maiores Mistérios do Mundo”, não há probabilidade da existência do satanismo, então não me levem a mal.
Marcela tem expressões corporais e faciais majestosas, comporta-se como uma menina e como uma mulher, como pede a dramaturgia criada por ela mesma. Estará gravada na retina dos meus olhos quando ela traz um gato a cena, esse que é um animal de rua, que se alimenta por meio de botes bem executados com uma façanha felina belíssima. Quando essa pomba gira é abandonada por sua mãe, aprende a sobreviver nas ruas, e como os gatos ela aprendeu a seguir afanando, explicando a cena.
Quando a menina chega no cabaré, leva as mulheres a suas meninas internas, uma cena que emociona, com chocalhos que levam ao lúdico, que minuciosidade mais bem-vinda!
A história é bem contada, explicativa e o mais importante, é de fácil compreensão para todos!
Não conheço história da pomba-gira a fundo, e me questionei sobre o nome. Diante da pesquisa aprendi que ela é conhecida como uma representação das forças da natureza, sendo assim, equivalente à figura feminina de Exu, o guardião do comportamento humano. E segundo o texto/dramaturgia, protegida por ele também.
Um espetáculo que merece ser visto, que inclusive me fez entender o motivo dos ingressos esgotados, não somente pelo tema, mas sim pelos elementos cênicos que estão no palco do teatro Glauce Rocha, entendendo também o motivo por sua prorrogação a convite do órgão federal de cultura.
Mesmo com o teatro cheio, toda equipe do teatro que nos recebe, tem um atendimento acolhedor, da bilheteria ao corpo de bombeiro que ali está.
Uma noite memorável para mim, diante dos aprendizados, performances explosivas, da estética visual da obra, de absolutamente tudo que me fez reconhecer um teatro de ótimo gosto e assertivo!
“Menina Mojubá” um espetáculo que conta a história da pombogira Menina, com 17 prêmios e 24 indicações, está em cartaz no teatro Glauce Rocha (av. Rio Branco, 179. Centro, RJ) todo sábado e domingo de abril, sábado às 19h e domingo às 18h.
FICHA TÉCNICA
Elenco: Marcela Treze e Gabriel Gama
Direção: Gabriel Gama
Dramaturgia: Marcela Treze
Direção Musical: César Lira
Figurino: Wanderley Gomes
Preparação Corporal: Cátia Costa
Iluminação: Isabella Castro
Assist. de Iluminação e operador de luz: Junio Nascimento
Assist. de Produção: Veronica Treze
Operador de som: Pedro Treze
Assessoria: Monteiro Assessoria
Designer: Rafaela Gama
SERVIÇO
06, 07, 13, 14, 20, 21, 27 e 28 de abril.
Sábados às 19h e domingo às 18h.
Ingressos:
R$15,00 (meia-entrada)
R$30,00 (inteira)
Vendas no Sympla
Sinopse:
Uma criança brasileira cresce nas ruas e descobre
carregar consigo uma força ancestral. Se torna uma pombagira após seu trágico falecimento, tornando-se umafigura poderosa no mundo espiritual, capaz de proteger e livrar todos que tenham caminhos semelhantes aos seus.
A história entrega um verdadeiro presente ancestral, apresentando ao espectador os elementos de relevância
da ritualística de terreiro: sons do tambor, o aroma das ervas e os pontos cantados. Assim são apresentadas as
entidades e suas características de vestimenta e trejeitos, com dança, música e muita energia feminina, oferecendo
ao público uma experiência única de teatro.