IRONIA

 

O homem que arruma o bigode latente cambaleia na calçada do subúrbio até a casa onde moram as filhas e os filhos, junto da esposa que vai levar de novo uns tapas, socos e talvez pontapés para aprender a não desdizer o marido. Não é pra vender fora, dizia ela. Não é pra aprender a dirigir, dizia ele. No dia seguinte culpava a bebida sem deixar de ser grosseiro. Pela noite, mesma coisa. Até que a mulher decidiu pelo desquite, foi batalhar a vida sozinha com tantos filhos, vendendo de porta em porta de coisa em coisa, bolsas pesadas, carro quadrado e pequeno, mas igualmente batalhador.

Quase sessenta anos depois eles seguem como pessoas, não como sujeitos de relações e responsabilidades mútuas. Os filhos formaram famílias, desfizeram famílias, formaram novas, com filhos que também formaram famílias, com netos, bisnetos desse primeiro casal. Ela, senhora com suas dificuldades de locomoção, abre o caminho vagarosa. Ele, carregando um troço de plástico que o ajuda a eliminar a urina, diz que mudou há mais de décadas.

Ela é arredondada de cuidados da família, de amigas, da religião. Ele ainda tropeça em diálogos, escapa dentro do universo das piadas e da graça que sente da própria gargalhada. Mas há ironias quase roteirizadas. Ela, que não é de terrorismos apesar de parecer, comemora anos no dia 11 de setembro. Perdeu o protagonismo por um tempo dentro do ciclo de amores para aquele horror que a televisão mostrou e faz questão de relembrar. Mesmo que o horror seja lá longe, em terra que ela não pisou e talvez nunca pise, com gente com língua que ele não faz questão de falar. Típica brasileira que veio da roça e luta mesmo não mais precisando. Por isso ainda teima em varrer o quintal, a abusar dos joelhos e da coluna para catar qualquer coisa do chão. Já ele desde sempre brinca com o dia que comemora os próprios anos. Ele é do signo de aquário, bem do final do período.

Ninguém mais toca na memória daquela época em que ele bebia mais que devia e fazia o que não deveria. Negócio de bater em mulher então, ninguém gosta de lembrar. Não falar é opção. Por outro lado, talvez tivesse sido melhor em algum momento encarar os fantasmas da vida e jogar os engasgos todos na mesa. Mesmo que seja para ouvir um mentiroso pedido de desculpas. Mas toda vez que se comemora o aniversário dele há uma pontinha de pesar por ser no dia da mulher. Infelizmente, no dia 8 de março.

 

Thiago Kuerques

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Sou escritor, professor e jornalista. Formado em Turismo (UFRRJ), Jornalismo (UNESA), Letras (UFF), Pós-graduado em Turismo Sustentável (CEFET) e mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias (UERJ). Publiquei os livros Território (2017), A Balada do Esquecido (2018), A Próxima Pandemia (2019), Tordesilhas (2021) e Vezenquando (2022), entre outras antologias das quais participei. Conquistei alguns prêmios literários, entre os quais Prêmio Baixada e Prêmio Trema 2021 e 2022. Atuo realizando oficinas de escrita sensível, escrita criativa, escrita periférica. Também realizo palestras para jovens e adultos com temas como literatura periférica, incentivo à produção literária, produção artística de diversas linguagens, comunicação e territorialidades. Minha obra fala sobre pessoas, memórias, educação e comunicação de um subúrbio melhor, de uma busca incessante pela valorização da identidade e do território.

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