Ela sempre sai de casa às sete horas da manhã, em ponto. Anda os cem metros até o ponto de ônibus, aguarda por poucos minutos e embarca. Senta-se, invariavelmente, no mesmo banco, no corredor, e evita qualquer contato visual. Ao exterior lança rápidos e furtivos olhares de localização. Com este propósito, e apenas por este desígnio, abre um novo livro, aleatoriamente, a cada viagem, e simula uma leitura reverente. A escolha do objeto tem como único critério as pontas dos dedos, de unhas curtas e roídas. Algumas frases entram, diariamente, como imagens obliteradas pela aridez do percurso, sem que nada seja impresso, sequer retido.
No dia em que esta história virou história, ela se atrasou alguns minutos, três no total. Faltou luz em toda a rua, um pico no fornecimento. Correu e pegou o livro que estava sobre a mesa, à espera do lugar na estante. Perdeu o ônibus e o próximo só veio dez minutos depois. Entrou e só havia um lugar, ao lado de um senhor. A caminho, pelo corredor, radiografou e não identificou nenhum risco. Um sorriso cedeu o lugar à janela. Tirou o livro, se atrapalhou com a bolsa e abriu no começo de um capítulo. A voz não a assustou, o mal-estar confirmou a regra. Não se virou.
“Escolheu bem o livro”. A voz carregada de simpatia e gentileza, com a risadinha final. “Sabe do que fala o texto, ou é daquelas pessoas que preferem descobrir no fluxo da leitura?” Fingiu não ouvir, aparentou concentração.
O tempo correu na contramão. Lembrou-se de virar a página com aparente tranquilidade. “Desculpa, não quero atrapalhar sua leitura, de jeito nenhum, mas é que, na verdade, isso é o sonho de todo escritor”. O olhar esquentava o pescoço e, como um imã, operava sobre sua atenção. O canto do olho se entregou. “Sabe?, sou o autor do livro, desse aí. Encontrá-lo, assim, num ônibus, com alguém tão envolvido na leitura é o melhor prêmio a que se pode aspirar.”
Algo afiado e original espetou o ponto sensível. Uma prova inesperada, nenhuma resposta a acertar. “Não precisa dizer nada, ainda está pelo meio, né? Mais uma vez peço desculpas, mas é, é incrível. Em geral a gente só vê livros estrangeiros, os best-sellers sendo lidos por aí. Parece até que os poucos leitores de autores brasileiros se envergonham de levar o livro pra rua. Putz, que chato eu, você aí querendo ler e o autor, logo ele, atrapalhando. Pra sua sorte, vou saltar aqui. Só posso desejar que goste. Ah, e se gostar, passe pra outra pessoa. E obrigado, tá?”
Foi para a orelha direita e viu a foto, bem mais novo, mas o mesmo olhar e a barba por fazer.
Leu: “Angelina era uma aluna aplicada e atenta. Repetia a cena e pedia para ver de novo. Miguel sugeria um ou outro detalhe, falava do timing, o artifício mais importante na comédia e no drama, onde um segundo fazia toda a diferença. Repetia a cena, voltava a fita para verem, mais uma vez, como fazia o mestre. Trabalharam especificamente a cena em que Carlitos, para se livrar de um policial, entra em um carro estacionado e, ao sair do outro lado, bate a porta, dando de cara com uma vendedora de flores. Ela oferece a flor ao cavalheiro que saiu do carro. Ele percebe então que ela é linda e cega. Escolhe a flor e dá seu último níquel a ela, tratando-a com todo o carinho, no momento em que o verdadeiro dono do carro volta, entra e sai com o veículo. A moça deixa-se levar pela imaginação, fica encantada. O vagabundo então se afasta, na ponta dos pés, para não quebrar o encantamento.
Uma imagem, de pouco mais de um minuto, mas para Miguel era tudo o que Chaplin queria mostrar ao criar seu vagabundo.
_ Veja a delicadeza do momento em que dois excluídos se encontram e a imaginação salva as aparências e cria a possibilidade de acontecer o que, de outra forma, seria improvável.”
Ela levanta o olhar das páginas e se depara com o novo, embora sempre estivesse lá. Não há realmente nada de diferente, apenas uma leve sensação, tipo não sei, mas é bom. A viagem segue e as páginas se sucedem.
Obs.:
- Antes e depois do encontro no ônibus é tudo inventado.
- O texto citado está no livro “Último Trem”, de minha autoria – ed. Vieira & Lent
- A cena descrita neste trecho é do filme “Luzes da Cidade”, de Charles Chaplin (1931)