Coluna de ROSE ARAUJO
É NOVO O ANO, de um inicio de fevereiro em suas previsões metereológicas avariadas e desconexas. Luis e eu nos arrumamos, no cuidado de não nos atrasarmos para primoroso compromisso. Borboletas dão looping no estômago, em algazarra e expectativa.
Chegamos ao Teatro Riachuelo, antigo Cine Palácio, no coração do Rio, em sua arquitetura neo-mourisca de 1890 e palco de artistas e intelctuais – há mais de um século – a contar e [en]cantar. Despedimos-nos apressados do motorista falante e disparo na frente, na missão de pegar os ingressos, em mar de filas e gentes. Conseguimos.
TERCEIRO SINAL, o público se ajeita nas poltronas, aqui fora. O elenco se organiza lá dentro. As luzes cessam e embalam a imersão. Paira um silêncio, mas os ouvidos mais atentos são capazes de escutar as simpatias, rezas e superstições na coxia.
Luis sorri e me dá um beijo de aperte-os-cintos-que-vai-começar. E começa também a emoção.
Em caprichada produção – 20 atores-cantores em cena e músicos preciosos – Martinho Coração de Rei – O Musical já nos toma de súbito e nos remete a povoados, cores e culturas da nave-mãe África. O musical prima pelos sentidos, os cinco e mais dois. Passeamos o olhar, prendemos a respiração diante da engendrada condução narrativa, destravamos o ouvir, ao sermos revisitados pelas primeiras composições do também poeta da Vila. Sentimos as primorosas interpretações de clássicos do nosso Rei Martinho, transitando pela sua vasta discografia. Devoramos, quadro a quadro, histórias, memórias e raízes ancestrais. É bonito de ver a “licença poética” sobre o nascimento de Martinho, onde traça-se um paralelo com o nascimento de Anhangalu, o orixá dos tambores, nascido de Ayan. Sim, tudo ali é bonito de se ver e sentir. Um espetáculo literalmente e s p e t a c u l a r.
De resto é intuir, se afetar, poemar.
O CENÁRIO CONDUZ A ATMOSFERA, A MÚSICA FAZ COSQUINHA NA MEMÓRIA E O FIGURINO ALINHAVA TODA A HISTÓRIA. O vestir despe, revelando essências, costumes, culturas e pontuando cronologias.
Voltada para o intuito da minha coluna, que abarca a poesia habitada em todas as artes, trago o meu olhar ao universo da vestimenta, do tecer que toca a pele e suas confessionalidades, forjando o hoje, no legado e feitura do amanhã.
Fotos: Divulgação- Erik Almeida
Figurino: Claudio Tovar
Atraída a esmiuçar o processo, tenho a oportunidade de entrevistar o icônico multiartista Claudio Tovar, figurinista do espetáculo, o qual [re]apresento a vocês, abaixo.
CLAUDIO TOVAR, capixaba, arquiteto, nosso eterno Dzi Croquettes, workaholic confesso, em seus 80 anos de vida e inspiração, é também artista plástico, ator, cantor, cenógrafo, arquiteto e figurinista. Ou seja: um multiartista, envolvido sempre em grandes fazeres e novidades.
Fui apresentada ao seu nome ainda nos anos 80, recém chegada de Londrina – Paraná , sob o boom do performático e inebriante Dzi Croquettes, grupo que inspirou As Frenéticas e Secos e Molhados, entre outros, e continua a inspirar.
ERA LIBERTÁRIO SER UM “DZI” E TOVAR FOI PICADO PELO BICHINHO DA VANGUARDA E CRIATIVIDADE, EM PLENOS ANOS DE CHUMBO, DA DITADURA. Daqueles tempos aos dias de hoje inúmeras peças de teatro, inventos, reinventos e desafios shaksperianos. Prêmios de teatro, filmes, novelas, cinema e musicais alimentaram seu olhar poético sobre a arte, que nutre e reinventa, desnublando novos dias.
TOVAR ASSINA O FIGURINO DE MARTINHO CORAÇÃO DE REI – O MUSICAL, em cartaz no Teatro Riachuelo – RJ, até o dia 23 de fevereiro.
Segue o nosso bate-papo:
ROSE ARAUJO (ArteCult) – Obrigada, Tovar, por nos brindar com tantas fases, ciclos, fazeres e presença…
CLÁUDIO TOVAR – Eu que agradeço pela divulgação do nosso trabalho. Eu me considero um compulsivo…rs…
RA – Um workaholic! É uma entrega, né? Um sacerdócio…
CT – Não sei se é um sacerdócio, porque é muito prazeroso descobrir novas formas, novas coisas, aprender cada vez mais. Eu sempre falo “se eu fosse um médico, eu estaria estudando sem parar”, então, como eu sou um artista plástico, eu faço coisas todos os dias, procurando melhorar, aperfeiçoar, aprender cada vez mais…
RA – E como nunca somos os mesmos, renovamos o olhar constantemente, tudo se faz novo e o leque abre-se à poesia dos dias e suas inúmeras possibilidades… Com sua longa trajetória nos sentires e fazeres de tantas artes, em revoadas por inúmeros projetos e desafios, conte-nos: o que o seduziu/ encantou a contar essa história sobre nosso mestre Martinho da Vila?
CT – Eu gostei muito de fazer, foi um mergulho lindo na cultura africana, não me canso de falar isso. Claro que eu já conhecia muita coisa, mas mergulhar de cabeça – como foi agora – e vendo chegar os tecidos de tantos lugares chegarem “esse aqui é de Benim, esse da Etiópia”, vendo as coroas, o trabalho manual, as contas de outro lugar, foi um aprendizado maravilhoso…
Recebi o convite do Miguel (Falabella, o diretor) e não sabia ao certo o que iria ser. Ele não queria uma ordem cronológica, engessada, e isso fez com que não tivéssemos uma visão geral. Fomos aos poucos entendendo e traduzindo a visão dele. Ele faz um apanhado geral , associando o nascimento de Martinho à lenda africana. Vai e volta, vai e volta. E se você prestar atenção os meus figurinos nem são tão realistas, os meus Martinhos são como príncipes, com faixa na cintura. E nem me pergunte o porquê…rs
Outro dia eu comentei com a Lucinha (Lins): “Deus é brasileiro”, ele vai me dando elementos e eu nem sei de onde vem a inspiração. De repente eu vi três ou quatro Martinhos e todos pontuados pela ancestralidade: intuição e criação.
Você vê, eu sou arquiteto de formação, estudei muito a cultura europeia, o Renascimento de Florença, fui a fundo nisso, mas eu pouco sabia sobre a história do meu povo. E como eu, quantos? É uma perda, nós é que perdemos…
RA – E estudando mais sobre a peça Martinho Coração de Rei me deparei com o produtor Jô Saldanha que, em outras montagens convidou as mulheres do Negócio Social Tereza, egressas do sistema prisional, em parceria com o Instituto Humanitas360, para fazerem parte, nas costuras. Como foi o seu processo com elas?
CT – Sim, foi bem interessante, pois inicialmente me propus a dar um workshop a elas. Pensei serem bordadeiras, mas não, trabalhavam fazendo panos de prato, toalhinhas, etc. Quando eu cheguei com meus materiais recicláveis, senti que se espantaram sem entenderem o porquê de tantas tampinhas e restos de fantasias. Aos poucos fui explicando, mostrando e um dia – quando visualizaram o resultado – ficaram encantadas, ali aconteceu a magia. Começaram a dar sugestões, misturar pedrarias, acho que curtiram muito, ampliaram o olhar.
O Negócio Social Tereza é uma instituição muito legal, regrada, era bonito vê-las mergulhadas no processo.
O Jô Saldanha, produtor, tem muitos méritos nessa inclusão, assim como tomou para si a missão de exaltar a cultura negra. Já nos presenteou com o musical sobre Cartola, Alcione, agora com Martinho, e está com um projeto sobre a Mangueira também. Muito louvável.
RA – Sim, desvelar outros mundos…
Eu costumo dizer que o vestir-se é também um despir-se, revelar-se. A forma como você se veste, o material, traduz um tempo, uma cultura, uma história, afirma a sua identidade e diz algo sobre costumes e a sociedade, ainda que inconscientemente.
Diante desse olhar, como você e sua equipe conceituaram, ressignificaram materiais, técnicas e soluções?
CT – Há muito tempo eu me preocupo com a questão do lixo. O desperdício enorme, coisas que podem ser reaproveitadas. É claro que é uma gota no oceano, mas meu trabalho é pontuado por isso. Às vezes preciso me desfazer, mas sempre trabalhei com essa questão. Roupa, mesmo, eu pego uma camiseta e reciclo porque não quero que ela se torne lixo, dou sobrevida a ela. Aí faço algo bacana e ela vira outra coisa, renasce.
O figurino de Martinho seguiu a mesma linha, já levei malas para a montagem em São Paulo, com colares, materiais, muita coisa.
Eu faço um trabalho, uma técnica japonesa chamada Boro – que significa “rasgar”, qualquer pano para mim é reciclável. Eles já utilizam há muitos anos pois sabem que o algodão é um material precioso e eles vão cerzindo e uma hora aquilo se transforma em um quimono, depois em uma sacola, até completar seu ciclo. Descobri a técnica fazendo um outro espetáculo do Miguel, O Homem de La Mancha. Fiquei maravilhado, pensei ter descoberto a pólvora…e eles, os japoneses, já desenvolviam a técnica há anos…rs
RA – Um dos muitos encantos de Martinho é sabermos que é uma homenagem a alguém atuante, dinâmico, multifacetado, que segue projetando e realizando sonhos: perceber um personagem que está aí, circulando e opinando.
Como foi, é, está sendo essa experiência?
CT – Eu acho que não tem nada melhor do que um artista ser homenageado em vida.
Na verdade ele ainda não foi assistir…rs…deve estar preparando o coração para a emoção, sobretudo por ter em cena dois netos atuando. Imagina você ter a sua obra no palco, contando a sua história, suas fases, composições, memórias?…não é fácil, haja coração!Uma vez eu fiz um espetáculo sobre o Aldir Blanc e o chamei para ver muitas vezes. Ele dizia “vou, eu vou” e nunca ia. Até que um dia ele foi.
_ Me deixe na ponta da fila porque, se eu não gostar, vou embora. Pedido atendido. Levou algumas garrafinhas de cerveja e se preparou. No final ele estava aos prantos, agradecendo tudo aquilo, que bom ser homenageado daquela forma. É uma grande emoção para eles e para nós também.
RA – Sim, ele irá no tempo dele e fará uma linda surpresa a todos!
Eu sempre faço uma pergunta aos meus convidados:
O que te
move, comove, envolve
nas artes, no mundo
e no mundo das artes?
CT – Ah, é difícil…
Olha, uma vez eu tive uma terapeuta, amiga minha, que tinha visto meus desenhos e ela me perguntou: _ Por que você fez isso?
_ Eu procurava Deus.
E ela respondeu:
_ Olha, quando você quiser procurar a Deus, senta na sua prancheta e desenha. Isso ficou muito forte para mim e tem horas que eu fico muito ligado nisso, é como se fosse uma oração, uma meditação.
Quando eu crio eu fico tão imerso, não é sacrifício nem nada, é natural, pulsa e transborda. É bacana, é bom.
Eu sou um senhor bem comportado rs…vivenciei ciclos, tenho meus prazeres, ficar em casa, lidando com preciosidades, me alimentar …e todos os dias eu trabalho.
Eu sou um arquiteto de formação, mas na verdade a única coisa que eu não fiz foi arquitetar. O resto eu fiz. Por outro lado eu sou um autodidata no teatro…
RA – Eu estava lendo sobre como você chegou ao lendário e icônico Dzi Croquettes..
CT – Sim, eu fui ao espetáculo, com uma amiga, e saí maravilhado. Decidido, fui aos bastidores e disse: quero fazer parte.
_ Ok, abriremos inscrições.
_ Não, quero fazer parte agora, HOJE! E assim foi, entrei para o grupo.Costumo dizer que o Dzi foi minha graduação, pós graduação, minha formação no teatro. Aprendi a dançar, cantar, produzir, atuar, tudo ali.
Agora, em novembro de 2024, lancei o livro de memórias, sob o meu olhar, é o meu ponto de vista em relação ao grupo. Ninguém havia escrito e eu resolvi escrever, para capturar a história. Esse pais é doido, memória curta, era necessário termos esse documento. Eu queria muito que alguém escrevesse, entao escrevi.
O livro chama-se DZI CROQUETTES: AS INTERNACIONAIS e está à venda na Livraria da Travessa.
RA – Nós é que agradecemos você ter escrito, tamanho registro, pois o Dzi foi precursor de movimentos e grupos. Enfrentou a Ditadura, levou sua poesia/arte ao mundo, projeção resistente, inteligente, persistente, irreverente e de vanguarda.
RA – Querido Tovar, estamos chegando ao final do nosso encontro. Você gostaria de fazer um convite, nos presentear com algum “spoiler”, falar sobre projetos?!… O palco é seu!
CT – Rose, obrigado pelo convite, pelo seu carinho e do ArteCult e pelo bate-papo.
Aproveito a oportunidade para contar a vocês que faremos o espetáculo sobre a vida de Jerry Adriani…aguardem, vem coisa boa por aí!
E convido a todos para assistirem Martinho, Coração de Rei – O Múusical, que está no Teatro Riachuelo, até o dia 23 de fevereiro, já em sua última semana. Corram lá, é a penúltima semana, e bom espetáculo!
Clique aqui e veja a matéria do ArteCult sobre o espetáculo!! E clique aqui para ler a crítica da colunista da nossa editoria ATUANDO, a produtora cultural e dramaturga Paty Lopes!
E não percam nossa próxima entrevista sobre FIGURINO. Conversaremos com o artista plástico e figurinista Wanderley Gomes!
Excelente entrevista! Parabéns, Rose!
Obrigada, querida Ana Lúcia…Sim, uma imersão no universo do Claudio Tovar! Maravilhoso! Bj
Parabéns pela descrição perfeita e fiel do musical – Martinho coração de Rei, complementada pela entrevista com o fantástico figurinista Cláudio Tovar.
Excelente!
Obrigada, querida Arlete…
O espetáculo é literalmente e s p e t a c u l a r ! Produção, atores/cantores, músicos, repertório, cenário, figurino…deslumbrante. E ainda ganhei o presente da entrevista com o Mestre Tovar. Pura poesia das Artes…Bj
“Belo trabalho, amiga, o Claudio é excelente”
Johnny Luz – Ator e instrutor de Yoga.
“Ficou lindo!”
Jô Santana
Produtor d o musical Martinho Coração de Rei,
pesquisador, ativista cultural.
“Ficou ótimo, gostei muito.
Obrigado, beijo”
Claudio Tovar
Artista plástico, multiartista, figurinista do musical Martinho, Coração de Rei.
“Maravilha, bem mais que uma entrevista,
mais que uma mùltipla lição.”
Xico Chaves
Poeta e artista visual.
“Sim, também achei…um Quixote no meio dos livros e da cultura”
Edson Cruz – poeta.
Que belo texto sobre o pulsar das vestimentas e sua importância em uma peça musical. Seu texto transcendeu a uma análise direta da peça e mostrou a importância do artista plástico e figurinista na peça e numa maior compreensão da obra do Martinho da Vila, na cultura brasileira. Parabéns, Rose Araujo, pela qualidade do texto que transcendeu a uma simples análise, trazendo um olhar poético sobre a arte da criação de um figurino.
Luis Turiba